Algum tempo atrás eu recebi um PDF do livro O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda do Leal de Souza. A obra de 1932 (creio eu) retrata alguns aspectos da umbanda, principalmente da praticada na Tenda do Zélio de Moraes, cujo autor presidia a segunda filial.
Achei interessante, inicialmente por ter já lido trecho do livro citado no Umbanda do João de Freitas, para quem já dediquei uma postagem aqui. Mas ao começar a leitura o interesse aumentou. Logo de cara:
O Sr. Leal de Souza, nos seus artigos sobre “O Espiritismo e as Sete Linhas de Umbanda”, não vai fazer propaganda, porém, elucidações, mostrando-nos, as diferenciações do espiritismo no Rio de Janeiro, as causas e os efeitos que atribui as suas práticas, dizendo-nos o que é como se pratica a feitiçaria, tratando não só dos aspectos científicos como ainda da Linha de Santo, dos Pais de Mesas, do uso do defumados, da água, da cachaça, dos pontos, em suma, da magia negra e da branca.
Esperamos que as autoridades incumbidas da fiscalização do espiritismo e muitas vezes desaparelhadas de recursos para diferencias o joio e o trigo, e o povo, sempre ávido de sensações e conhecimentos, compreendam, em sua elevação, os intuitos do Diário de Notícias.
Já de início fica clara a intenção da publicação, diferenciar o joio do trigo, dar a umbanda nascente de Zélio de Moraes um estatuto público diferente do dado aos demais rituais de espiritismo de umbanda perseguidos na época.
De fato, o livro traz algumas considerações gerais acerca da umbanda praticada nas tendas de Zélio e procura diferenciá-las das praticas de magia. Destaca muito do que qualquer médium da religião sabe: que as provas de incorporação às quais as entidades e médiuns eram submetidos, são hoje shows de exibicionismo; que a função de uma mediunidade consciente é o de dar oportunidade ao médium de aprender com a entidade com a qual trabalha; que não se deve cruzar braços e pernas durante as sessões, etc. Além, dentre algumas descrições parcas sobre as linhas de umbanda, os orixás, que hoje vemos de forma bem diferenciada dependendo da casa e da escola de umbanda.
Não vou destacar nesse momento as qualidades e o que deixa a desejar no livro, mas sim o seu valor histórico. Remeto aqui a uma observação que Beatriz Góes Dantas faz em seu livro "Vovô Nagô e Papai Branco" sobre a construção do Nagô Puro:
"Outro ponto que destaco do livro é o capítulo 4 que trata da "Construção e significado da pureza Nagô". Este capítulo traz, como elemento interessante, a origem daquilo que foi classificado como PURO nas religiões afro. Inicialmente esta designação partiu dos chefes de casa que estavam dispostos a, junto com intelectuais e antropólogos (Gilberto Freyre, Artur Ramos), a revitalizar a cultura negra, coisa que nem todos os terreiros e barracões estavam dispostos, pela desconfiança natural que se tinha dos "de fora" em uma época de perseguições violentas à religião. Posteriormente, quando essa "moda de revitalização" chegou à Bahia (com Verger e Jorge Amado, junto a outros antropólogos) a noção de pureza foi ressignificada, passando a se referir aos terreiros que continham mais traços comum com os remanescentes cultos africanos (remanescentes, pois hoje em dia a África é quase toda protestante e católica e o culto primitivo aos Orixás é fortemente combatido como prática de feitiçaria). Enfim, por um lado a pureza significava valores regionais típicos, por outro a pureza significava a proximidade do culto com a Mãe África. Mas é interessante destacar que, tanto de um lado como de outro, era consensual que a prática do culto visando o mal, ou fazer mal a outrém era, era desprezada.
Desde o princípio está envolvido no conceito de "pureza" a prática do culto com o objetivo de trazer força e prosperidade aos filhos de santo. A cura de males que possam ser causados por "Orixás insatisfeitos". A ideia mais comum é que cuidando do santo se garante uma vida feliz e próspera ao filho de santo."
O Valor Histórico das Obras de Leal, tem o mesmo contexto: o de tentar diferenciar a umbanda de Zélio das demais práticas do gênero. E, não podendo apelar para uma "pureza Nagô" ou "pureza Africana", apena para os conceitos de "bem e mal", aponta para um sincretismo cristão forte que não o nega:
A Linha Branca de Umbanda e Demanda tem o seu fundamento no exemplo de Jesus, expulsando a vergalho os vendilhões do templo. Às vezes, é necessário recorrer à energia para reprimir o sacrilégio, consistente na violação das leis de Deus em prejuízo das criaturas humanas.
Outras vezes apela para o caráter elevado que as entidades escondem, remetendo à herança espírita que me pergunto se é do autor ou da umbanda em si, muito embora ele remonte à fatos:
Uma ocasião, numa pequena reunião de cinco pessoas, um protetor caboclo descarregava os maus fluidos de uma senhora, enquanto também incorporado, um preto velho, Pai Antônio, fumava um cachimbo, observando a descarga.
- Cuidado, caboclo avisou o preto. O coração dessa filha não está batendo de acordo com o pulso.
- Como é que Pai Antônio viu isso? Deixe verificar, pediu um médico presente à sessão.
Depois da verificação, confirmou o aviso do preto, que o surpreendeu de novo, emitindo um termo técnico da medicina, e explicando que o fenômeno não provinha, como acreditava o clínico, de suas causas fisiológicas, porém de ação fluídica, tanto que terminada a descarga, se restabelecia a circulação normal no organismo da dama. E assim aconteceu.
O doutor, então, quis conversar sobre a sua ciência com o espírito humilde do preto, e, antes de meia hora, confessava, com um sorriso, e sem despeito, que o negro abordara assuntos que ele ainda não tivera oportunidade de versar, e estranhava:
- Pai Antonio não pode ser o espírito de um preto da África e não se compreende que baixe para fumar cachimbo e falar língua inferior ao cassanje (dialeto crioulo do português falado nessa região; por ext. português mal falado e escrito.)
- Eu sou preto, meu filho.
- Não, Pai Antonio. O senhor sabe mais medicina do que eu.
Por que fala desse modo? Há de ser por alguma razão.
O preto velho explicou:
- Eu não baixo em roda de doutores. Doutor, aqui só há um, que és tu, e nem sempre vens cá. Depois, meu filho, se eu começo a falar língua de branco, posso ficar tão pretensioso como tu, que dizes saber menos medicina de que eu, disse, numa linguagem, arrevesada, que traduzimos.
Os protetores da Linha Branca em geral se especializam, no espaço, em estudos ou trabalhos de sua predileção na Terra e baixam aos centros e incorporam para um objetivo definido. Acontece, porém, que muitas vezes são induzidos a erros pelos consulentes, com a cumplicidade dos presidentes de sessões. Uma pessoa os interroga sobre assunto de que não tem conhecimento pleno.
As obras de Leal de Souza e o acesso que este tinha a veículos da imprensa foram fundamentais para que a umbanda fosse legitimada enquanto expressão religiosa e, qualquer historiador que se preze da religião deverá passar pelas obras dele. Acredito que se a história de Zélio de Moraes e a construção da sua escola de umbanda como referência prática em inúmeros terreiros de hoje (mesmo àqueles que não praticam a umbanda de Zélio estritamente) se deve à Leal de Souza como divulgador da religião.
Há aqui, o que parece ser uma construção da religião, tal qual ocorreu com o discurso de "pureza" nas nações, um mesmo movimento, muito embora não tenha tido autoria de antropólogos. O que me faz, novamente, refletir sobre a construção de narrativas e a influência que essas construções passam a ter, ao longo dos anos, sobre a própria religião. Hoje, são antropólogos e historiadores que se voltam para a figura de Leal de Souza para tentar reconstruir esse momento de "surgimento" da umbanda.
É assim: a pessoa que me enviou o texto levantou uma bola, e eu como pesquisadora amadora, encontrei links com documentos que podem ser bem interessantes para quem se interessar nessa parte da história da umbanda:
Documentos Históricos da Umbanda - onde o livro de Leal de Souza que citei se encontra disponível para download, além de outros documentos interessantes.
Há também uma biografia de Leal de Souza (sim, isso muito me interessa...rs) escrita pelo historiador Diamantino Fernandes Trindade, que ressalta a figura do escritor como um intelectual reconhecido da época.
O Sr. Leal de Souza, nos seus artigos sobre “O Espiritismo e as Sete Linhas de Umbanda”, não vai fazer propaganda, porém, elucidações, mostrando-nos, as diferenciações do espiritismo no Rio de Janeiro, as causas e os efeitos que atribui as suas práticas, dizendo-nos o que é como se pratica a feitiçaria, tratando não só dos aspectos científicos como ainda da Linha de Santo, dos Pais de Mesas, do uso do defumados, da água, da cachaça, dos pontos, em suma, da magia negra e da branca.
Esperamos que as autoridades incumbidas da fiscalização do espiritismo e muitas vezes desaparelhadas de recursos para diferencias o joio e o trigo, e o povo, sempre ávido de sensações e conhecimentos, compreendam, em sua elevação, os intuitos do Diário de Notícias.
Já de início fica clara a intenção da publicação, diferenciar o joio do trigo, dar a umbanda nascente de Zélio de Moraes um estatuto público diferente do dado aos demais rituais de espiritismo de umbanda perseguidos na época.
De fato, o livro traz algumas considerações gerais acerca da umbanda praticada nas tendas de Zélio e procura diferenciá-las das praticas de magia. Destaca muito do que qualquer médium da religião sabe: que as provas de incorporação às quais as entidades e médiuns eram submetidos, são hoje shows de exibicionismo; que a função de uma mediunidade consciente é o de dar oportunidade ao médium de aprender com a entidade com a qual trabalha; que não se deve cruzar braços e pernas durante as sessões, etc. Além, dentre algumas descrições parcas sobre as linhas de umbanda, os orixás, que hoje vemos de forma bem diferenciada dependendo da casa e da escola de umbanda.
Não vou destacar nesse momento as qualidades e o que deixa a desejar no livro, mas sim o seu valor histórico. Remeto aqui a uma observação que Beatriz Góes Dantas faz em seu livro "Vovô Nagô e Papai Branco" sobre a construção do Nagô Puro:
"Outro ponto que destaco do livro é o capítulo 4 que trata da "Construção e significado da pureza Nagô". Este capítulo traz, como elemento interessante, a origem daquilo que foi classificado como PURO nas religiões afro. Inicialmente esta designação partiu dos chefes de casa que estavam dispostos a, junto com intelectuais e antropólogos (Gilberto Freyre, Artur Ramos), a revitalizar a cultura negra, coisa que nem todos os terreiros e barracões estavam dispostos, pela desconfiança natural que se tinha dos "de fora" em uma época de perseguições violentas à religião. Posteriormente, quando essa "moda de revitalização" chegou à Bahia (com Verger e Jorge Amado, junto a outros antropólogos) a noção de pureza foi ressignificada, passando a se referir aos terreiros que continham mais traços comum com os remanescentes cultos africanos (remanescentes, pois hoje em dia a África é quase toda protestante e católica e o culto primitivo aos Orixás é fortemente combatido como prática de feitiçaria). Enfim, por um lado a pureza significava valores regionais típicos, por outro a pureza significava a proximidade do culto com a Mãe África. Mas é interessante destacar que, tanto de um lado como de outro, era consensual que a prática do culto visando o mal, ou fazer mal a outrém era, era desprezada.
Desde o princípio está envolvido no conceito de "pureza" a prática do culto com o objetivo de trazer força e prosperidade aos filhos de santo. A cura de males que possam ser causados por "Orixás insatisfeitos". A ideia mais comum é que cuidando do santo se garante uma vida feliz e próspera ao filho de santo."
O Valor Histórico das Obras de Leal, tem o mesmo contexto: o de tentar diferenciar a umbanda de Zélio das demais práticas do gênero. E, não podendo apelar para uma "pureza Nagô" ou "pureza Africana", apena para os conceitos de "bem e mal", aponta para um sincretismo cristão forte que não o nega:
A Linha Branca de Umbanda e Demanda tem o seu fundamento no exemplo de Jesus, expulsando a vergalho os vendilhões do templo. Às vezes, é necessário recorrer à energia para reprimir o sacrilégio, consistente na violação das leis de Deus em prejuízo das criaturas humanas.
Outras vezes apela para o caráter elevado que as entidades escondem, remetendo à herança espírita que me pergunto se é do autor ou da umbanda em si, muito embora ele remonte à fatos:
Uma ocasião, numa pequena reunião de cinco pessoas, um protetor caboclo descarregava os maus fluidos de uma senhora, enquanto também incorporado, um preto velho, Pai Antônio, fumava um cachimbo, observando a descarga.
- Cuidado, caboclo avisou o preto. O coração dessa filha não está batendo de acordo com o pulso.
- Como é que Pai Antônio viu isso? Deixe verificar, pediu um médico presente à sessão.
Depois da verificação, confirmou o aviso do preto, que o surpreendeu de novo, emitindo um termo técnico da medicina, e explicando que o fenômeno não provinha, como acreditava o clínico, de suas causas fisiológicas, porém de ação fluídica, tanto que terminada a descarga, se restabelecia a circulação normal no organismo da dama. E assim aconteceu.
O doutor, então, quis conversar sobre a sua ciência com o espírito humilde do preto, e, antes de meia hora, confessava, com um sorriso, e sem despeito, que o negro abordara assuntos que ele ainda não tivera oportunidade de versar, e estranhava:
- Pai Antonio não pode ser o espírito de um preto da África e não se compreende que baixe para fumar cachimbo e falar língua inferior ao cassanje (dialeto crioulo do português falado nessa região; por ext. português mal falado e escrito.)
- Eu sou preto, meu filho.
- Não, Pai Antonio. O senhor sabe mais medicina do que eu.
Por que fala desse modo? Há de ser por alguma razão.
O preto velho explicou:
- Eu não baixo em roda de doutores. Doutor, aqui só há um, que és tu, e nem sempre vens cá. Depois, meu filho, se eu começo a falar língua de branco, posso ficar tão pretensioso como tu, que dizes saber menos medicina de que eu, disse, numa linguagem, arrevesada, que traduzimos.
Os protetores da Linha Branca em geral se especializam, no espaço, em estudos ou trabalhos de sua predileção na Terra e baixam aos centros e incorporam para um objetivo definido. Acontece, porém, que muitas vezes são induzidos a erros pelos consulentes, com a cumplicidade dos presidentes de sessões. Uma pessoa os interroga sobre assunto de que não tem conhecimento pleno.
As obras de Leal de Souza e o acesso que este tinha a veículos da imprensa foram fundamentais para que a umbanda fosse legitimada enquanto expressão religiosa e, qualquer historiador que se preze da religião deverá passar pelas obras dele. Acredito que se a história de Zélio de Moraes e a construção da sua escola de umbanda como referência prática em inúmeros terreiros de hoje (mesmo àqueles que não praticam a umbanda de Zélio estritamente) se deve à Leal de Souza como divulgador da religião.
Há aqui, o que parece ser uma construção da religião, tal qual ocorreu com o discurso de "pureza" nas nações, um mesmo movimento, muito embora não tenha tido autoria de antropólogos. O que me faz, novamente, refletir sobre a construção de narrativas e a influência que essas construções passam a ter, ao longo dos anos, sobre a própria religião. Hoje, são antropólogos e historiadores que se voltam para a figura de Leal de Souza para tentar reconstruir esse momento de "surgimento" da umbanda.
É assim: a pessoa que me enviou o texto levantou uma bola, e eu como pesquisadora amadora, encontrei links com documentos que podem ser bem interessantes para quem se interessar nessa parte da história da umbanda:
Documentos Históricos da Umbanda - onde o livro de Leal de Souza que citei se encontra disponível para download, além de outros documentos interessantes.
Há também uma biografia de Leal de Souza (sim, isso muito me interessa...rs) escrita pelo historiador Diamantino Fernandes Trindade, que ressalta a figura do escritor como um intelectual reconhecido da época.
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Reunião dos dirigentes das Tendas fundadas pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, presidida por Zélio de Moraes na TENSP |
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