A razão pela qual essa postagem tem uma "Parte I" no título reside no fato de não pretender esgotar o tema nessa postagem. Aqui apresentarei apenas uma problematização da divisão "direita" e "esquerda", sob um viés antropológico, problematizando essa divisão e a forma como ela atua no imaginário de quem vê a umbanda de fora. Não se trata de apresentar uma visão de "doutrina", mas apenas de entender como um simbolismo que não pertence apenas à umbanda, mas está presente nela e em várias culturas (alguns diriam até que está presente em um inconsciente coletivo) resulta em interpretações que, hoje o umbandista, com alguma dificuldade, se esforça em desconstruir. Também gostaria de deixar claro que o objetivo dessa postagem é o de questionar as relações que estabelecemos com a "esquerda" sob o ponto de vista de uma antropologia. Ou seja, trata-se menos de delinear as características doutrinárias reservadas a essa linha, e mais de observar que quando falamos "esquerdo" aparecem muitas relações simbólicas que não são vistas inicialmente e que refletem também na forma como concebemos a linha da esquerda, seja conscientemente ou inconscientemente.
É comum a todos os umbandistas a existência das linhas de direita e da linha de esquerda. E em conjunto com o trabalho dessas linhas vem uma série de preceitos relacionados que inclui o uso das mãos direita e esquerda, em certas ocasiões, dependendo de qual das linhas se trabalha - uso da mão direita ao lidar com as linhas da direita, uso da mão esquerda ao lidar com a linha de esquerda. E com o tempo observei que algo parecido e ligado aos lados direito e esquerdo de nosso corpo se repetem durante os trabalhos das entidades, mesmo as das linhas de direita, quando pretendem em algum momento "evocar" as forças da esquerda. Isso me fez refletir: 1) sobre os usos que nós mesmos fazemos sobre essa divisão "direita" e "esquerda"; 2) como "esquerda" e "direita" são compreendidos e empregados no senso comum e que, fatalmente, resultará em; 3) a forma como as linhas de "esquerda" parecem se opor antagonicamente as linhas de "direita".
É claro que, como boa nerd que sou, não fiz essa reflexão, nem tampouco escrevo essa postagem, sem antes ter procurado alguns textos que pudessem me ajudar a organizar o que eu já vinha refletindo a respeito. E foi pesquisando que encontrei o artigo A preeminência da mão direita: um estudo sobre a polaridade religiosa, do antropólogo Robert Hertz. A partir desse artigo, pude organizar melhor uma ideia que estava surgindo na minha mente de forma intuitiva, apenas.

As relações entre "direito" e "bom" X "esquerdo" e "profano", "mau", estão tão arraigados em nossas mentes que podemos facilmente perceber, junto com Hertz, que até mesmo na nossa linguagem usamos frequentemente os termos "direito" e "esquerdo" para designar o "certo e o "errado". A palavra sinistro em nossa língua possui essa raiz de significação. Segundo o dicionário AULETE, sinistro significa:
a.
1. Que provoca temor, que pressagia uma desgraça (ambiente sinistro, ameaça sinistra, silêncio sinistro); ASSUSTADOR
2. Que usa a mão esquerda; CANHOTO [ Antôn.: destro ]
3. Que indica perversidade; que causa mal (projetos sinistros).
4. Que inspira receio (olhar sinistro); ASSUSTADOR
sm.
5. Desastre, acidente: No sinistro morreram cinco pessoas.
6. Grande prejuízo material: A inundação não causou vítimas, mas o sinistro foi considerável.
7. Dano em qualquer bem segurado (pagamento do sinistro).
[F.: Do lat. sinistrum, de sinister, -tra, -trum 'esquerdo, canhoto'.]
Se formos mais longe, podemos até notar que o termo em inglês "Bright" (brilhante, luminoso) carrega um "right" (direito, certo) em sua composição.
Do mesmo modo, quando se fala em "linha de esquerda" na umbanda, os exus e pombo giras, muita gente pensa na associação com o diabo. Se for evangélico, então, nem se fala. Mas será que apenas eles pensam dessa forma? Será que não há algo na própria forma como essa linha é concebida que faz com que essa seja uma associação válida?
Mesmo que nos dias atuais exista um esforço em eliminar essa associação (Exu=Diabo, portanto àquele que pratica o mal) será que não existe algo na forma como compreendemos essas entidades que torna mais difícil a dissociação? Pensemos...
Arquetipicamente essas entidades são espíritos que representam representam a nossa ligação com a terra, consequentemente, trazem em seus gestuais elementos que nos tornam mais próximos a eles. A dubiedade de exu, a sensualidade das pombo-giras. Eles estão constantemente lidando, nos atendimentos, com as questões mais materiais - trabalho, amor, etc... São eles que vem ao socorro quando se lida com uma energia mais densa, pesada, a chamada demanda ou quebra de magia. Isso porque possuem contato mais direto com o oculto (que sempre foi relacionado ao lado esquerdo).
Hertz, no artigo cujo link coloquei acima, observa que uma das consequências da distinção "direito" X "esquerdo", que culminam nos papéis que as mãos esquerda e direita possuem na sociedade, é que ao lado esquerdo ficou, quando muito, reservada a função de auxiliar o lado direito, tido como o certo. O lado esquerdo, devido às construções de significados presentes desde sempre em diversas culturas, não possuía o "direito" de se desenvolver plenamente. Isso, Hertz afirma literalmente sobre o uso das mãos e da tentativa sistemática que existiu durante anos a fio de tornar crianças canhotas em destras. Mas será que, de certa forma, isso não pode ser notado também em relação à construção da umbanda?
Os primeiros terreiros de umbanda (aqueles que seguiam a linha de Zélio de Morais) não trabalhavam com a chamada "linha de esquerda". Aos poucos essas linhas foram aparecendo como linha "auxiliar", para firmar a defesa de uma casa (a tronqueira) e em alguns centros se fazia sessões com eles apenas para médiuns. Seja como for, a linha de esquerda não aparece como o pilar da umbanda. Quando se fala em umbanda, sempre se pensa que umbanda é feita principalmente com criança, caboclo e preto-velho. Ou seja, as linhas chamadas de "direita". Grande parte dos terreiros possuem nomes ou de santos católicos, ou de caboclos e pretos-velhos. Não é habitual vermos um centro de umbanda tendo um exu, ou pombo-gira, como guia chefe, e se vemos um, logo desconfiamos da índole da casa. Será que é mesmo umbanda, ou é mais um tentando usar impropriamente o nome da religião? No entanto, nos dias atuais, são raros os terreiros que não trabalhem com exus. Qual o papel deles, então? Não seria o de auxiliar os trabalhos realizados pelas linhas de direita?
Em resumo, inconscientemente, endossamos o papel auxiliar mencionado por Hertz no artigo, quando relegamos aos exus os trabalhos de limpeza pesada, bem como os trabalhos de magia que lidam com o que há de mais oculto, para auxiliar o bom andamento dos trabalhos da direita. Com isso, também endossamos a ideia de que os exus são as entidades mais "sinistras" da umbanda, por que apenas eles podem lidar com o oculto (mesmo que eles usem isso para a prática do bem). A sensualidade da pombo-giras, o jeito mais solto do exu, também fazem com que essa linha torne presente à mente do consulente coisas que ele talvez viesse esconder de um preto-velho por moralismo, ou por saber ser incorreto. São várias as situações em que, mesmo que tentemos desmistificar a figura de exu, desvencilhando ela da prática da "baixa magia" ou de uma associação com o "diabo", "o mal", nós mesmos pensamos neles como representando, ou indicando, a presença (mesmo que seja para combatê-la) de coisas que não são desejáveis dentro do serviço do bem.
Há também as situações onde, nas giras de direita, em casos de emergência, essa força da "esquerda" é chamada a servir. Assim como existem entidades de direita que trazem em si a possibilidade de trabalhar, também, nas linhas de esquerdas. Os chamados "quimbandeiros". E é justamente em relação ao trabalho dessas entidades "quimbandeiras" que o simbolismo dos "lados direito e esquerdo do corpo" se farão presentes em certos momentos. Seja na hora de preparar suas firmezas, seja na hora de aplicar um passe. Algum tempo atrás, ouvi de um dirigente de terreiro, que a presença de entidades da linha de direita "quimbandeiras" se justifica pelo fato de a umbanda na sua origem não trabalhar com as linhas de esquerda. E como em tudo é necessário um equilíbrio, a própria "linha de direita" encontrou um meio de trazer as forças da "esquerda" para dentro do terreiro.
Enfim, o assunto está longe de se esgotar e por isso pretendo, em algum momento, fazer a Parte II dessa postagem que versará justamente sobre a ideia de polaridade e complementariedade de forças.
Mas para quem deseja ler um pouco mais sobre o assunto, outro texto que também indico sobre o tema é O PODER DO ESQUERDO, publicado no blog "Estudos Bantos".
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