27 de out. de 2016

Pontos Riscados

Uma das coisas na umbanda que intriga os neófitos são os pontos riscados. Fazendo uma busca na web sobre o tema, encontramos algumas coisas a respeito, mas tenho dúvida se essas coisas traduzem o que é o ponto riscado. Encontramos muito frequentemente, na maior parte das vezes, que um ponto riscado é uma assinatura da entidade de umbanda.

Nos terreiros, ouvimos muitos aconselhamentos que nos alertam sobre "os perigos" em buscar pontos riscados, bem como a compreensão deles via internet. Isso ocorre por duas razões básicas:

1) existem vários espíritos agrupados em um mesmo nome de falange (exemplo: caboclo 7 flechas); isso não significa que exista uma única assinatura de falange. Cada caboclo 7 flechas terá o seu ponto riscado, individual e intransferível. Por essa razão os terreiros, de modo geral, desaconselham seus neófitos a buscarem na internet. Isso, de certo modo, pode dificultar o processo do desenvolvimento, uma vez que falte uma compreensão adicional (que exporei a seguir).

2) Pontos riscados possuem uma gramática própria e nem todos são uma "assinatura" da entidade. Existem pontos de firmeza, pontos de descarga, pontos de energização e assim por diante... O fato é que cada ponto riscado tem como objetivo formar um amálgama, uma síntese das energias que serão usadas em determinado trabalho, de forma que nenhuma outra possa vir interferir.

Dessa forma notamos que nos casos dos pontos riscados das entidades de umbanda, cada uma delas trará em seu ponto riscado as energias que elas podem vir manipular. Esse ponto pode ser diferente, por exemplo de um ponto de proteção dado pela entidade. Assim nem sempre que um neófito recebe por intuição, ou em sonho, um ponto riscado significa que este é o ponto de "identificação" de uma entidade. Da mesma forma nem sempre ao encontrarmos um desenho de ponto riscado na internet, atribuído a uma guia de uma certa falange, esse ponto será o ponto da nossa entidade e/ou o ponto de identificação da entidade.

Pontos riscados são formados de acordo com uma gramática que APENAS as entidades de umbanda conhecem. Algumas vezes os próprios guias nos permitem conhecer um pouco desses pontos, mas a gramática mesmo as entidades sabem.

Há também na web algumas tabelas que associam símbolos de pontos riscados à linhas de trabalho e à Orixás. É interessante saber esses significados, sim. Mas sempre levando em consideração que qualquer um desses símbolos pode adquirir outro significado dependendo da posição em que aparece no ponto, dependendo, inclusive, da direção do traço na hora da riscagem.

Em resumo: saber parte do símbolos e significados frequentes nos pontos riscados é útil, mas não resume o que é o ponto riscado.




27 de ago. de 2016

Seria Sócrates um médium? (Ou ainda: seria o espiritismo cristão em sentido próprio?)

Essa postagem é um pouco inspirada no artigo "Eram os gregos macumbeiros?". Porém em uma vertente diferente. 

Ultimamente tenho me voltado bastante para filosofia grega e dentre tantos preparos para aula, pensei: porque não aproveitar o ensejo para pesquisar algo que me interesse? E assim comecei um estudo que já tem alguns anos eu desejava fazer. Tentar entender um pouco melhor o conceito de DAEMON no pensamento socrático, tal qual reproduzido por Platão (e Xenofantes, também, muito embora não tenha me aprofundado nesse segundo autor).

No meio dos meus estudos lembrei que no Evangelho Segundo o Espiritismo há um tópico, logo na introdução, só sobre como Sócrates teria sido um "precursor" das ideias cristãs - acho (meio hereticamente) que não é bem assim, e espero poder falar disso mais a frente. Mas importa, nesse primeiro momento que o Espiritismo considera Sócrates como um dos primeiros pensadores a falar sobre reencarnação e sobre espíritos que nos acompanham, DAEMONES, que seriam, na visão kardecistas como mentores espirituais.

Os artigos que encontrei sobre o tema mostram que parte da condenação de Sócrates envolve não apenas o fato dele ser considerado um "aliciador de jovens", no sentido de disseminar entre eles a reflexão, o questionamento sobre temas básicos como "a justiça", "o bem", etc. Está presente também na condenação de Sócrates a acusação de subverter as crenças estabelecidas, o que alguns interpretam em como não crer nos deuses e de substituí-los por outros seres (que seriam os daemones). Para compreender melhor isso é necessário entender: (1) se tais entidades já estavam presentes na religiosidade grega; (2) a forma como Sócrates pessoalmente se relacionava com seu daemon. Ao falarmos dessa segunda parte é que a questão do título desse post se coloca.

Sobre o tópico (1) podemos explicar em linhas gerais que desde Hesíodo (bem antes de Sócrates) os daemones já faziam parte da religiosidade grega. Eles eram subordinados à um Theos, um Deus. E eram responsáveis por acompanhar os homens (um para cada homem) para garantir que seu destino se cumprisse, mas sem interferir nisso. Ou seja, não havia nenhum tipo de comunicação entre um homem e seu daemon pessoal, nem para o bem, nem para o mal. No final da vida (e isso o kardecismo fala certo) é o daemon o responsável por conduzir a alma "do seu humano" pelo Hades.

A grande diferença que podemos encontrar entre os daemones clássicos e os que são referidos por Sócrates, é que, diferente do que diria a religiosidade, Sócrates conseguia "ouvir" conselhos de seu daemon. O daemon, não agia, deixava as escolhas por conta de Sócrates, mas o aconselhava de vez em quando. E é essa relação com o seu daemon pessoal que gerou a grande confusão. Como, de acordo com Hesíodo, os daemons apenas selam para que os destinos sejam cumpridos sem nunca interferir (nem comunicar nada), era uma afronta Sócrates estabelecer uma relação de camaradagem com seu daemon pessoal. Na cabeça dos gregos, Sócrates estava substituindo a crença nos deuses pela crença em seu daemon, como se ele fosse a divindade. 

Alguns interpretes consideram que a acusação de Sócrates era equivoca, e que não se trata de uma "substituição de divindades", mas sim da ressignificação dos daemones, já que antes de Sócrates essa comunicação não ocorria (não que a gente saiba...rs) O próprio Sócrates, em sua defesa, argumentou que Daemones são mensageiros dos Deuses, cada um subordinado a um Deus, crer nos daemones, implica necessariamente crer nos deuses que os criaram e os colocaram para guardar os homens. A diferença é que Sócrates recebia e acolhia os conselhos dados por seu daemon (que pelo que li era enviado por Apolo). Enfim, o problema todo estava, na verdade, no fato de Sócrates se comunicar com esses ser "dividos" e tê-lo como conselheiro. E por isso veio a questão: Seria Sócrates um Médiun?

Segundo o Evangelho Segundo o Espiritismo, sim. O contato de Sócrates com o daemon representa o que hoje se vê nos contatos mediúnicos com mentores espirituais. 

Mas esse é um blog sobre umbanda, certo? Por que abordar esse tema aqui? 
Cabe lembrar que proponho não um mero acordo com o Espiritismo (lá no começo do texto) mas uma leitura de certo modo herética do texto de Kardec. 

Quando Kardec menciona Sócrates, o faz no sentido dele ser um precursor de idéias cristãs que estão presentes no espiritismo. Mas será que é isso mesmo? Vejamos: no espiritismo os mentores espirituais não são enviados por Deuses e nem subordinado à deuses. Já na umbanda podemos encontrar algo bem mais parecido com o que os gregos falavam sobre esses seres, uma vez que todos os espíritos trabalhadores de umbanda são agrupados em falanges que respondem a um Orixá (seja esse Orixá interpretado uma deidade ou como força da natureza). Talvez isso ocorra justamente por ter uma "raiz" pagã em ambos os casos: O panteão grego não era cristão, assim como o panteão dos Orixás não era cristão em sua origem.

Ao que diz respeito aos daemones, creio que eles sejam mais próximos dos guias espirituais de umbanda, que dos mentores espíritas, pelo fato deles serem ordenados, organizados, conforme os deuses do olimpo. 

Mas o Evangelho afirma que Sócrates é um precursor das ideias do cristianismo. Afirma, também, que nada do que ele traz é absolutamente novo na história da humanidade. A própria proposta do Evangelho de Kardec é apresentar uma releitura de passagens do novo testamento à luz da doutrina espírita, mostrando que a doutrina não é contraditória com o texto sacro. Mas se é assim, porque ainda vemos tamanha resistência dos católicos em aceitarem a doutrina espírita? Seria puro preconceito? Será que Sócrates, os daemones, a reencarnação são compatíveis com os dizeres de Jesus, de acordo com o cristianismo apostólico romano que conhecemos? Não. E nem dá para afirmar que historicamente em algum momento o cristianismo tenha aceito teorias similares ao que prega o Espiritismo. É uma afirmação forte, sim. Mas uma afirmação baseada nas cruzadas que catequizavam pelo sangue, bem como nas perseguições e condenações das Heresias.

Historicamente o sec. XIII foi decisivo em relação à consolidação de determinadas doutrinas católicas. Dois eventos marcaram parte um momento de "depuração" da doutrina para transformá-la no que conhecemos hoje.

O primeiro foi o Concílio de Latrão de 1215. Nesse concílio, a igreja condenou o "Catarismo", uma vertente que surgia na França e que possuía bases muito similares às que vemos hoje no espiritismo. Não é possível rastrear totalmente sua origem já que os Cátaros foram praticamente dizimados e grande parte da sua doutrina se perdeu (e essa era a ideia mesmo, fazer sumir do mapa). Nas pesquisas que fiz, já encontrei tanto a descrição do Catarismo como uma "manifestação espontânea" gerada por uma leitura autônoma do novo testamento, como uma vertente mística do cristianismo que negava a sua hierarquia interna, os cargos, etc. (e nesse caso a condenação da doutrina ganha cunho político), como já li que o Catarismo tem origem nas doutrinas bizantinas, vindas de Alexandria, que questionavam dogmas como a transubstanciação da trindade em um só Deus, além de considerar a ressurreição de forma bem próxima à reencarnação dos orientais.

Outro momento foi em 1277, onde um decreto (décret de l'évêque) condenou todas as doutrinas de origem averroísta, que, dentre várias coisas pertinentes ao universo ser infinito, resgate da física ptolomaica, etc., diziam ser a alma humana uma parte de Deus e que, ao final da vida, a alma humana se reintegraria com Deus. Doutrina que muito ajudou na construção da "nova ciência" (sec. XV-XVII) e inspirou filósofos posteriores como Giordano Brunno e Espinosa.

Enfim, o cristianismo, tal qual conhecemos, nunca reconheceu como parte sua essas doutrinas que, de certo modo, encontramos, também, no espiritismo. Logo, não seria por essas teses (reencarnação, resgate cármico, etc.) que o espiritismo deveria se reconhecer como cristão. Nem tampouco Sócrates poderia ser visto como precursor de ideias cristãs, a meu ver. E por isso chamo essa minha leitura de "leitura herética do espiritismo", pois sei que muitos espíritas dogmáticos me colocariam na fogueira por isso...rs.

O que há de comunhão real entre o cristianismo e o espiritismo é o resgate do termo "ágape" como "caritas", ou seja, o amor mais divino segundo o testamento (o amor ao próximo) como caridade. Mas talvez esse venha ser tema de outra postagem, ou não...rs

Para a ideia original da postagem, já me estendi até demais! 



21 de ago. de 2016

Como ler um livro?

Esse post é uma crítica à forma como buscamos os livros. Qualquer livro...mas principalmente àqueles que abordam temas religiosos de umbanda e/ou espiritismo.

É comum nos dias de hoje que qualquer iniciante na religião de umbanda busque na internet, em blogs ou em livros respostas para dúvidas que muitas das vezes o dirigente por si só não sabe responder. Mas o que buscamos nos livros? Verdades? Por que vemos nos livros um local privilegiado onde uma "verdade" é revelada para nós? De onde vem isso? Essa relação com a palavra escrita, como se a escrita fosse uma autoridade?

De outro modo, porque grande parte das pessoas vêem como se a falta de um léxico, um corpo teórico escrito, enfraquecesse a religiosidade? Mas já falei um pouco disso aqui.

Um neófito de umbanda, perdido, fatalmente buscará em fontes escritas (virtuais ou em livros) meios de se orientar. E muitas vezes ao encontrar algo que se afine com aquilo que ele "pressente", mas não sabe ao certo se é fato ou não, logo toma como verdade. Outros tomam como verdades teorias rebuscadas, que se coadunem com sua cultura. Ainda há aqueles que levarão em conta a "autoridade" da fala: um texto espírita secular, textos escritos e endossados por vários sacerdotes e dirigentes, ou ainda a autoridade de uma mística reconhecidamente milenar, como se grandes segredos estivessem sendo ali revelados. Assim nascem os diversos tipos de leituras sobre a umbanda: os que tem por base a doutrina espírita, os que tem por base as instituições umbandistas, os que tem por base uma "mística" que tem sua origem em qualquer lugar, menos nos Orixás e Caboclos e Pretos Velhos, que são apenas desdobramentos brasileiros de forças universais. Não que eu descreia das místicas, acho mesmo que em muitos pontos elas se tocam (como boa leitora de Mircea Eliade e Joseph Campbell, rs). Mas elas se tocam, não necessariamente se misturam formando um amálgama de culturas babilônicas, egípcias, pagãs, europeias e brasileiras. Explicando matematicamente: vários conjuntos podem tem um ou dois elementos comuns, mas isso não os tornam conjuntos iguais.

Nessa busca, muitas vezes o neófito acaba encontrando suas "verdades" em textos cuja concepção de umbanda diferem muito daquela do terreiro onde se encontra e, mais cedo ou mais tarde, essa diferença resultará na necessidade de uma escolha: "ou o terreiro que estou está certo e o livro errado (e com isso minhas dúvidas retornam) ou o livro está certo e o terreiro que estou está errado." Porém, não precisa ser assim. Isso acaba ocorrendo devido a relação que estabelecemos com o texto escrito. 

Nossa cultura está pautada na sacralização do texto escrito.

Vou explicar: desde cedo aprendemos que nos livros encontramos o que é certo. Na escola a professora ensina a buscar a resposta certa no livro, ou seja o livro traz uma verdade que nos fará tirar uma nota boa na prova (como professora, tenho restrições a essa metodologia, mas ela é comum em grande parte das instituições de ensino). Se a família é católica, aprende-se que na Bíblia está a verdade revelada por Deus aos apóstolos. Se queremos saber o que ocorre no mundo, procuramos os jornais que nos "revelarão" os principais acontecimentos. Em resumo, somos educados a procurar "a verdade" nos mais diferentes tipos de textos escritos.

Essa forma de educação obscurece em grande parte uma outra função do texto escrito: o de simplesmente tornar público um pensamento. Assim acontece com os livros de poesias, literatura, e pesquisas acadêmicas em geral (muito embora alguns vejam os textos acadêmicos com a mesma sacralidade apontada anteriormente). Esquecemos muitas vezes que uma mesma notícia, por exemplo, será publicada com diferentes interpretações, dependendo do jornal que buscamos. O mesmo acontece com os livros de história, porque um fato histórico pode ser contado de diferentes maneiras. A dificuldade aparece na hora que lidamos com textos de cunho religioso: espíritas e umbandistas. Porque compreendemos sempre, devido a nossa cultura, que livros religiosos nos trazem "verdades". Assim o neófito ao buscar o texto de umbanda, verá nele o lugar de uma verdade sacralizada e aí vem a confusão. Livros de umbanda, assim como os demais textos, são escritos sob perspectivas. O que vale para um autor, não vale para outro. Alguns descrevem a concepção de umbanda predominante no ritual de umbanda de sua casa, outros pretendem universalizar e fornecer um corpo doutrinário que seja comum a várias casas. São inúmeras as intensões das publicações que podemos encontrar sobre a umbanda, uma delas também abordamos aqui. E é justamente a multiplicidade das intensões, bem como a multiplicidade das práticas umbandistas, que devemos considerar sempre ao ler um texto sobre umbanda. Ideal é ter em mente que ele nos traz UMA verdade, e não A verdade. Essa verdade pode se adequar mais ou menos com a forma da casa que frequentamos, ou com a forma como sentimos a religião por meio dos ensinamentos dos guias espirituais. Devemos sempre lembrar, também, que parte dos ensinamentos de umbanda ocorrem oralmente e, por isso, nenhum livro ou texto dará conta de forma completa do que é a umbanda.

Um filme que didaticamente mostra com humor o valor que a nossa cultura dá ao texto escrito, bem como pontua as diferentes perspectivas da narração de uma história e a dificuldade do historiador ao escolher uma delas, é Narradores de Javé, filme brasileiro de 2003, dirigido por Eliane Caffé. Termino essa postagem com link para o filme:









3 de abr. de 2016

A Legitimação da Umbanda como Religião (notas)

Algum tempo atrás eu recebi um PDF do livro  O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda do Leal de Souza. A obra de 1932 (creio eu) retrata alguns aspectos da umbanda, principalmente da praticada na Tenda do Zélio de Moraes, cujo autor presidia a segunda filial.  

Achei interessante, inicialmente por ter já lido trecho do livro citado no Umbanda do João de Freitas, para quem já dediquei uma postagem aqui. Mas ao começar a leitura o interesse aumentou. Logo de cara:

O Sr. Leal de Souza, nos seus artigos sobre “O Espiritismo e as Sete Linhas de Umbanda”, não vai fazer propaganda, porém, elucidações, mostrando-nos, as diferenciações do espiritismo no Rio de Janeiro, as causas e os efeitos que atribui as suas práticas, dizendo-nos o que é como se pratica a feitiçaria, tratando não só dos aspectos científicos como ainda da Linha de Santo, dos Pais de Mesas, do uso do defumados, da água, da cachaça, dos pontos, em suma, da magia negra e da branca.
Esperamos que as autoridades incumbidas da fiscalização do espiritismo e muitas vezes desaparelhadas de recursos para diferencias o joio e o trigo, e o povo, sempre ávido de sensações e conhecimentos, compreendam, em sua elevação, os intuitos do Diário de Notícias.

Já de início fica clara a intenção da publicação, diferenciar o joio do trigo, dar a umbanda nascente de Zélio de Moraes um estatuto público diferente do dado aos demais rituais de espiritismo de umbanda perseguidos na época.

De fato, o livro traz algumas considerações gerais acerca da umbanda praticada nas tendas de Zélio e procura diferenciá-las das praticas de magia. Destaca muito do que qualquer médium da religião sabe: que as provas de incorporação às quais as entidades e médiuns eram submetidos, são hoje shows de exibicionismo; que a função de uma mediunidade consciente é o de dar oportunidade ao médium de aprender com a entidade com a qual trabalha; que não se deve cruzar braços e pernas durante as sessões, etc. Além, dentre algumas descrições parcas sobre as linhas de umbanda, os orixás, que hoje vemos de forma bem diferenciada dependendo da casa e da escola de umbanda.

Não vou destacar nesse momento as qualidades e o que deixa a desejar no livro, mas sim o seu valor histórico. Remeto aqui a uma observação que Beatriz Góes Dantas faz em seu livro "Vovô Nagô e Papai Branco" sobre a construção do Nagô Puro:

"Outro ponto que destaco do livro é o capítulo 4 que trata da "Construção e significado da pureza Nagô". Este capítulo traz, como elemento interessante, a origem daquilo que foi classificado como PURO nas religiões afro. Inicialmente esta designação partiu dos chefes de casa que estavam dispostos a, junto com intelectuais e antropólogos (Gilberto Freyre, Artur Ramos), a revitalizar a cultura negra, coisa que nem todos os terreiros e barracões estavam dispostos, pela desconfiança natural que se tinha dos "de fora" em uma época de perseguições violentas à religião. Posteriormente, quando essa "moda de revitalização" chegou à Bahia (com Verger e Jorge Amado, junto a outros antropólogos) a noção de pureza foi ressignificada, passando a se referir aos terreiros que continham mais traços comum com os remanescentes cultos africanos (remanescentes, pois hoje em dia a África é quase toda protestante e católica e o culto primitivo aos Orixás é fortemente combatido como prática de feitiçaria). Enfim, por um lado a pureza significava valores regionais típicos, por outro a pureza significava a proximidade do culto com a Mãe África. Mas é interessante destacar que, tanto de um lado como de outro, era consensual que a prática do culto visando o mal, ou fazer mal a outrém era, era desprezada.

Desde o princípio está envolvido no conceito de "pureza" a prática do culto com o objetivo de trazer força e prosperidade aos filhos de santo. A cura de males que possam ser causados por "Orixás insatisfeitos". A ideia mais comum é que cuidando do santo se garante uma vida feliz e próspera ao filho de santo."
O Valor Histórico das Obras de Leal, tem o mesmo contexto: o de tentar diferenciar a umbanda de Zélio das demais práticas do gênero. E, não podendo apelar para uma "pureza Nagô" ou "pureza Africana", apena para os conceitos de "bem e mal", aponta para um sincretismo cristão forte que não o nega:

A Linha Branca de Umbanda e Demanda tem o seu fundamento no exemplo de Jesus, expulsando a vergalho os vendilhões do templo. Às vezes, é necessário recorrer à energia para reprimir o sacrilégio, consistente na violação das leis de Deus em prejuízo das criaturas humanas.

Outras vezes apela para o caráter elevado que as entidades escondem, remetendo à herança espírita que me pergunto se é do autor ou da umbanda em si, muito embora ele remonte à fatos:

Uma ocasião, numa pequena reunião de cinco pessoas, um protetor caboclo descarregava os maus fluidos de uma senhora, enquanto também incorporado, um preto velho, Pai Antônio, fumava um cachimbo, observando a descarga.

- Cuidado, caboclo avisou o preto. O coração dessa filha não está batendo de acordo com o pulso.
- Como é que Pai Antônio viu isso? Deixe verificar, pediu um médico presente à sessão.

Depois da verificação, confirmou o aviso do preto, que o surpreendeu de novo, emitindo um termo técnico da medicina, e explicando que o fenômeno não provinha, como acreditava o clínico, de suas causas fisiológicas, porém de ação fluídica, tanto que terminada a descarga, se restabelecia a circulação normal no organismo da dama. E assim aconteceu.

O doutor, então, quis conversar sobre a sua ciência com o espírito humilde do preto, e, antes de meia hora, confessava, com um sorriso, e sem despeito, que o negro abordara assuntos que ele ainda não tivera oportunidade de versar, e estranhava:

- Pai Antonio não pode ser o espírito de um preto da África e não se compreende que baixe para fumar cachimbo e falar língua inferior ao cassanje (dialeto crioulo do português falado nessa região; por ext. português mal falado e escrito.)
- Eu sou preto, meu filho.
- Não, Pai Antonio. O senhor sabe mais medicina do que eu.
Por que fala desse modo? Há de ser por alguma razão.
O preto velho explicou:
- Eu não baixo em roda de doutores. Doutor, aqui só há um, que és tu, e nem sempre vens cá. Depois, meu filho, se eu começo a falar língua de branco, posso ficar tão pretensioso como tu, que dizes saber menos medicina de que eu, disse, numa linguagem, arrevesada, que traduzimos.

Os protetores da Linha Branca em geral se especializam, no espaço, em estudos ou trabalhos de sua predileção na Terra e baixam aos centros e incorporam para um objetivo definido. Acontece, porém, que muitas vezes são induzidos a erros pelos consulentes, com a cumplicidade dos presidentes de sessões. Uma pessoa os interroga sobre assunto de que não tem conhecimento pleno.

As obras de Leal de Souza e o acesso que este tinha a veículos da imprensa foram fundamentais para que a umbanda fosse legitimada enquanto expressão religiosa e, qualquer historiador que se preze da religião deverá passar pelas obras dele. Acredito que se a história de Zélio de Moraes e a construção da sua escola de umbanda como referência prática em inúmeros terreiros de hoje (mesmo àqueles que não praticam a umbanda de Zélio estritamente) se deve à Leal de Souza como divulgador da religião.

Há aqui, o que parece ser uma construção da religião, tal qual ocorreu com o discurso de "pureza" nas nações, um mesmo movimento, muito embora não tenha tido autoria de antropólogos. O que me faz, novamente, refletir sobre a construção de narrativas e a influência que essas construções passam a ter, ao longo dos anos, sobre a própria religião. Hoje, são antropólogos e historiadores que se voltam para a figura de Leal de Souza para tentar reconstruir esse momento de "surgimento" da umbanda.

É assim: a pessoa que me enviou o texto levantou uma bola, e eu como pesquisadora amadora, encontrei links com documentos que podem ser bem interessantes para quem se interessar nessa parte da história da umbanda:

Documentos Históricos da Umbanda - onde o livro de Leal de Souza que citei se encontra disponível para download, além de outros documentos interessantes.

Há também uma biografia de Leal de Souza (sim, isso muito me interessa...rs) escrita pelo historiador Diamantino Fernandes Trindade, que ressalta a figura do escritor como um intelectual reconhecido da época.
Reunião dos dirigentes das Tendas fundadas pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, presidida por Zélio de Moraes na TENSP












21 de fev. de 2016

Simbolismos do lado esquerdo - Parte I

A razão pela qual essa postagem tem uma "Parte I" no título reside no fato de não pretender esgotar o tema nessa postagem. Aqui apresentarei apenas uma problematização da divisão "direita" e "esquerda", sob um viés antropológico, problematizando essa divisão e a forma como ela atua no imaginário de quem vê a umbanda de fora. Não se trata de apresentar uma visão de "doutrina", mas apenas de entender como um simbolismo que não pertence apenas à umbanda, mas está presente nela e em várias culturas (alguns diriam até que está presente em um inconsciente coletivo) resulta em interpretações que, hoje o umbandista, com alguma dificuldade, se esforça em desconstruir. Também gostaria de deixar claro que o objetivo dessa postagem é o de questionar as relações que estabelecemos com a "esquerda" sob o ponto de vista de uma antropologia. Ou seja, trata-se menos de delinear as características doutrinárias reservadas a essa linha, e mais de observar que quando falamos "esquerdo" aparecem muitas relações simbólicas que não são vistas inicialmente e que refletem também na forma como concebemos a linha da esquerda, seja conscientemente ou inconscientemente.

É comum a todos os umbandistas a existência das linhas de direita e da linha de esquerda. E em conjunto com o trabalho dessas linhas vem uma série de preceitos relacionados que inclui o uso das mãos direita e esquerda, em certas ocasiões, dependendo de qual das linhas se trabalha - uso da mão direita ao lidar com as linhas da direita, uso da mão esquerda ao lidar com a linha de esquerda. E com o tempo observei que algo parecido e ligado aos lados direito e esquerdo de nosso corpo se repetem durante os trabalhos das entidades, mesmo as das linhas de direita, quando pretendem em algum momento "evocar" as forças da esquerda. Isso me fez refletir: 1) sobre os usos que nós mesmos fazemos sobre essa divisão "direita" e "esquerda"; 2) como "esquerda" e "direita" são compreendidos e empregados no senso comum e que, fatalmente, resultará em; 3) a forma como as linhas de "esquerda" parecem se opor antagonicamente as linhas de "direita".

É claro que, como boa nerd que sou, não fiz essa reflexão, nem tampouco escrevo essa postagem, sem antes ter procurado alguns textos que pudessem me ajudar a organizar o que eu já vinha refletindo a respeito. E foi pesquisando que encontrei o artigo A preeminência da mão direita: um estudo sobre a polaridade religiosa, do antropólogo Robert Hertz. A partir desse artigo, pude organizar melhor uma ideia que estava surgindo na minha mente de forma intuitiva, apenas.

O fato é que durante muito tempo tudo o que era relacionado ao esquerdo era escondido, ou impedido de atuar pelo simples fato de relacionarem este lado à coisas ruins, ocultas, obscuras, profanas, ou seja, a tudo o que é oposto ao bem. Eu não sabia muito bem como colocar isso como ponto de partida: inquisição? Onde canhotos eram considerados bruxos? Na índia? Onde tradicionalmente a limpeza higiênica de detritos humanos é realizada sempre com a mão esquerda (e por isso come-se apenas com a mão direita). Pelo sufismo islâmico dos dervixes que dançam com a mão direita estendida ao céu para colher as bênçãos divinas e a mão esquerda reta, voltada para a terra? Pelas falas cristãs:  Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita;Para que a tua esmola seja dada em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, ele mesmo te recompensará publicamente.Mateus 6:3,4 Ou ainda a oração do Credo, que afirma a posição de Jesus à direita de Deus... Enfim, são tantas as culturas que distinguem os lados "direito" e "esquerdo", culturas seculares e milenares, que fica mesmo complicado tentar traçar um momento, ou um local onde isso possa ter surgido. 

As relações entre "direito" e "bom" X "esquerdo" e "profano", "mau", estão tão arraigados em nossas mentes que podemos facilmente perceber, junto com Hertz, que até mesmo na nossa linguagem usamos frequentemente os termos "direito" e "esquerdo" para designar o "certo e o "errado". A palavra sinistro em nossa língua possui essa raiz de significação. Segundo o dicionário AULETE, sinistro significa:
a.
1. Que provoca temor, que pressagia uma desgraça (ambiente sinistro, ameaça sinistra, silêncio sinistro); ASSUSTADOR
2. Que usa a mão esquerda; CANHOTO [ Antôn.: destro ]
3. Que indica perversidade; que causa mal (projetos sinistros).
4. Que inspira receio (olhar sinistro); ASSUSTADOR
sm.
5. Desastre, acidente: No sinistro morreram cinco pessoas.
6. Grande prejuízo material: A inundação não causou vítimas, mas o sinistro foi considerável.
7. Dano em qualquer bem segurado (pagamento do sinistro).
[F.: Do lat. sinistrum, de sinister, -tra, -trum 'esquerdo, canhoto'.]

Se formos mais longe, podemos até notar que o termo em inglês "Bright" (brilhante, luminoso) carrega um "right" (direito, certo) em sua composição.

Do mesmo modo, quando se fala em "linha de esquerda" na umbanda, os exus e pombo giras, muita gente pensa na associação com o diabo. Se for evangélico, então, nem se fala. Mas será que apenas eles pensam dessa forma? Será que não há algo na própria forma como essa linha é concebida que faz com que essa seja uma associação válida?

Mesmo que nos dias atuais exista um esforço em eliminar essa associação (Exu=Diabo, portanto àquele que pratica o mal) será que não existe algo na forma como compreendemos essas entidades que torna mais difícil a dissociação? Pensemos...

Arquetipicamente essas entidades são espíritos que representam representam a nossa ligação com a terra, consequentemente, trazem em seus gestuais elementos que nos tornam mais próximos a eles. A dubiedade de exu, a sensualidade das pombo-giras. Eles estão constantemente lidando, nos atendimentos, com as questões mais materiais - trabalho, amor, etc... São eles que vem ao socorro quando se lida com uma energia mais densa, pesada, a chamada demanda ou quebra de magia. Isso porque possuem contato mais direto com o oculto (que sempre foi relacionado ao lado esquerdo).

Hertz, no artigo cujo link coloquei acima, observa que uma das consequências da distinção "direito" X "esquerdo", que culminam nos papéis que as mãos esquerda e direita possuem na sociedade, é que ao lado esquerdo ficou, quando muito, reservada a função de auxiliar o lado direito, tido como o certo. O lado esquerdo, devido às construções de significados presentes desde sempre em diversas culturas, não possuía o "direito" de se desenvolver plenamente. Isso, Hertz afirma literalmente sobre o uso das mãos e da tentativa sistemática que existiu durante anos a fio de tornar crianças canhotas em destras. Mas será que, de certa forma, isso não pode ser notado também em relação à construção da umbanda?

Os primeiros terreiros de umbanda (aqueles que seguiam a linha de Zélio de Morais) não trabalhavam com a chamada "linha de esquerda". Aos poucos essas linhas foram aparecendo como linha "auxiliar", para firmar a defesa de uma casa (a tronqueira) e em alguns centros se fazia sessões com eles apenas para médiuns. Seja como for, a linha de esquerda não aparece como o pilar da umbanda. Quando se fala em umbanda, sempre se pensa que umbanda é feita principalmente com criança, caboclo e preto-velho. Ou seja, as linhas chamadas de "direita". Grande parte dos terreiros possuem nomes ou de santos católicos, ou de caboclos e pretos-velhos. Não é habitual vermos um centro de umbanda tendo um exu, ou pombo-gira, como guia chefe, e se vemos um, logo desconfiamos da índole da casa. Será que é mesmo umbanda, ou é mais um tentando usar impropriamente o nome da religião? No entanto, nos dias atuais, são raros os terreiros que não trabalhem com exus. Qual o papel deles, então? Não seria o de auxiliar os trabalhos realizados pelas linhas de direita?

Em resumo, inconscientemente, endossamos o papel auxiliar mencionado por Hertz no artigo, quando relegamos aos exus os trabalhos de limpeza pesada, bem como os trabalhos de magia que lidam com o que há de mais oculto, para auxiliar o bom andamento dos trabalhos da direita. Com isso, também endossamos a ideia de que os exus são as entidades mais "sinistras" da umbanda, por que apenas eles podem lidar com o oculto (mesmo que eles usem isso para a prática do bem). A sensualidade da pombo-giras, o jeito mais solto do exu, também fazem com que essa linha torne presente à mente do consulente coisas que ele talvez viesse esconder de um preto-velho por moralismo, ou por saber ser incorreto. São várias as situações em que, mesmo que tentemos desmistificar a figura de exu, desvencilhando ela da prática da "baixa magia" ou de uma associação com o "diabo", "o mal", nós mesmos pensamos neles como representando, ou indicando, a presença (mesmo que seja para combatê-la) de coisas que não são desejáveis dentro do serviço do bem.

Há também as situações onde, nas giras de direita, em casos de emergência, essa força da "esquerda" é chamada a servir. Assim como existem entidades de direita que trazem em si a possibilidade de trabalhar, também, nas linhas de esquerdas. Os chamados "quimbandeiros". E é justamente em relação ao trabalho dessas entidades "quimbandeiras" que o simbolismo dos "lados direito e esquerdo do corpo" se farão presentes em certos momentos. Seja na hora de preparar suas firmezas, seja na hora de aplicar um passe. Algum tempo atrás, ouvi de um dirigente de terreiro, que a presença de entidades da linha de direita "quimbandeiras" se justifica pelo fato de a umbanda na sua origem não trabalhar com as linhas de esquerda. E como em tudo é necessário um equilíbrio, a própria "linha de direita" encontrou um meio de trazer as forças da "esquerda" para dentro do terreiro.

Enfim, o assunto está longe de se esgotar e por isso pretendo, em algum momento, fazer a Parte II dessa postagem que versará justamente sobre a ideia de polaridade e complementariedade de forças.

Mas para quem deseja ler um pouco mais sobre o assunto, outro texto que também indico sobre o tema é O PODER DO ESQUERDO, publicado no blog "Estudos Bantos".




15 de fev. de 2016

Há 7 anos atrás...

Há 7 anos eu iniciava esse blog com a seguinte fala:

Resgatar memórias e reconstruir fragmentos é fundamental para a continuidade... Uma pessoa que se perde no tempo dificilmente saberá para onde anda. É necessário caminhar, mas caminhar conscientes de que ao mesmo tempo que não somos mais os mesmos, somos a soma de tudo o que se foi.

Curiosamente hoje, eu vinha refletindo sobre todos esses anos de umbanda, sobre como a minha visão mudou e, em uma viagem de ônibus foi como se eu refizesse vários caminhos na mente como em um filme. Cheguei em casa pensando em escrever sobre essas reflexões que reconstruiu bem mais que esses 7 anos de blog. São cacos de memórias que hoje fazem sentido e explicam o que sinto nesse momento. Qual não foi o meu espanto ao abrir o blog e reler a primeira "fala" que aqui escrevi! Talvez hoje essa frase tenha um sentido mais pessoal que na época em que a escrevi (ou não). O fato é que essa "fala" resume a reflexão feita hoje, 7 anos depois, a qual pretendo expor aqui.

Nunca foi intenção minha trazer aqui reflexões experiências pessoais nas vivências de terreiro, se o fiz nesses 7 anos, sempre procurei na maior parte das vezes embasa-los com pesquisas complementares, coisa de "ranço" acadêmico que trago na minha história de vida. Sempre fui pesquisadora, mesmo antes da universidade. A universidade só piorou (ou não) o que já existia de inato no meu modo de ver as coisas. Mas hoje, em especial, sinto necessidade de fazer um relato de cunho mais pessoal, sem bases teóricas (não prometo que a postagem será toda assim, mas não é esse o objetivo principal hoje).

Quando iniciei esse blog eu tinha 2 anos de desenvolvimento mediúnico consciente. Digo consciente, porque a minha primeira experiência em um desenvolvimento foi 9 anos antes, aos 19 anos, na casa de umbanda que minha mãe frequentava na assistência desde a minha infância. O fato é que eu tinha crescido indo naquele terreiro toda semana e fiquei sem graça de dizer "não" quando falaram na minha entrada para o corpo mediúnico e eu ganhei de presente a roupa, e tudo o mais que era necessário para o meu ingresso. Fiquei um ano no desenvolvimento e me afastei. Me afastei porque depois de um tempo no desenvolvimento (sem nunca ter incorporado nenhuma entidade por medo) me colocaram para no trabalho de cura. Perguntei "por quê", e apenas me disseram que era ali o meu lugar. Nos trabalhos de cura não tinha incorporação, então eu estava razoavelmente tranquila, muito embora o que eu queria mesmo era ser cambona na sessão de consulta de preto-velho. Mas, disseram que a cura era o meu lugar. Chegando no trabalho de cura, me explicaram quais gestos eu deveria fazer, mas também não me explicaram porque. Disseram apenas para que eu confiasse, pois teria algum guia espiritual ao meu lado atuando através de mim. Assim fui até notar que sempre estava presente uma senhora com a foto da filha. Um dia, descobri que a filha dessa senhora estava com câncer terminal no hospital, razão pela qual não poderia ela mesma ir ao centro para as sessões. Aquela foi a minha última sessão de cura. Não dava para continuar. Aquela senhora estava depositando toda a confiança dela no trabalho dos médiuns daquela sessão e eu, com 19 anos, não tinha a mínima ideia do porquê e o quê exatamente eu fazia lá. Assim eu me afastei do centro antes de completar 20 anos.

Anos depois ao decidir retomar um desenvolvimento, não cabe aqui expor a razão,  o fiz de forma bem mais consciente e não o fiz sem antes pesquisar bastante a respeito para driblar meus medos. Li sobre processo de incorporação, mediunidade, tipos de mediunidade, etc. E já era bem mais fácil achar material sobre o assunto, pois a internet já estava popularizada. Comecei em um centro em Vila Isabel (e era lá onde eu estava quando comecei esse blog), que descobri depois ser o terceiro centro mais antigo do RJ. Lá encontrei muitas coisas boas, e outras também muito ruins. Das coisas boas lembro do caboclo que me batizou, da minha madrinha, do meu batismo, do "encontro" com o preto velho que trabalha comigo e que me levou até lá, de como aquela decisão era importante e finalmente fazia sentido pra mim. Uma das coisas boas que lembro era de um médium bem antigo de lá, Sr. João, que mesmo quando eu não precisava sempre vinha conversar comigo. Lembro de uma vez que voltando da PUC, onde eu tinha terminado o mestrado e estava voltando de uma palestra, encontrei com ele no ônibus da forma mais estapafúrdia que se possa imaginar. Em viagens de ônibus eu sempre me desligo, então não vi que ele tinha sentado do meu lado. Na verdade ele também não me chamou. O que eu sei é que eu estava distraída, sentada na janela com fones de ouvido e um rock no máximo, quando comecei a sentir alguns arrepios. Lembro de ter pensado: "tô doida de vez! Sentindo vibrações no ônibus!" Foi quando eu me ajeitei no banco tentando me desvencilhar da sensação é que o vi do meu lado. E na mesma hora começamos a conversar naturalmente, como se o encontro ocasional no ônibus tivesse sido programado. Tanto o encontro, quanto a conversa, foi algo muito estranho e até hoje me assusta um pouco lembrar disso! Eu tinha uns dois meses na casa quando esse encontro aconteceu. O Fato é que depois desse encontro, todas as vezes o S. João, ou o guia dele vinha me auxiliar e me aconselhar. Destaco o fato que de todos os médiuns da casa ele era o único que trabalhava diretamente com um "mestre do oriente", que mesmo sem que eu pedisse, sempre vinha me ajudar e me dar conselhos. Uma das coisas que o guia dele todas as vezes destacava, com certa insistência, era que eu deveria trabalhar não só na umbanda, mas também em um lugar que fizessem trabalhos de cura espiritual.  

Essa insistência me incomodava bastante por algumas razões: a primeira era o meu ceticismo inato que não me permitia acreditar em todas as coisas que o mestre me dizia. Algumas delas eu considerava mesmo exageradas e inverossímeis. A segunda era o fato dos trabalhos de cura, com mestres, etc., estarem quase todos ligados ao espiritismo. Eu tinha graves problemas com os espíritas. Muito embora eu tivesse buscado no Livro dos Médiuns de Kardec explicações para o que eu vivia, eu detestava espíritas, pois todos os espíritas kardecistas mais fervorosos que conheci na vida eram pessoas muito, mas muito ruins e hipócritas. Para mim, na época, o espiritismo era o local onde a "contradição performativa" acontecia de forma mais veemente e, por isso, queria distância dele. O terceiro motivo é que a minha experiência de anos antes era muito viva para que eu pensasse no assunto "cura". Apesar disso, guardo imenso carinho pelo S. João e pelo Mestre dele, pois eu sempre soube, no fundo, que essas três coisas eram problemas meus que eu teria que driblar. Sinto carinho e guardo como uma recordação boa, pois eles (S. João e o Mestre) eram dos poucos que me aceitavam ali dentro, que tentavam me orientar com zelo e que cuidavam de mim. Alguns anos depois soube que a filha dele fizera parte do mesmo centro e que apresentava uma mediunidade bem parecida com a minha. Soube, também, que ela havia sido rejeitada e destratada pelos demais da casa da mesma forma como acontecera comigo lá. Sabendo disso, entendi a razão da preocupação intensa do S. João comigo desde a minha entrada na casa. 

Comecei esse blog quando eu tinha 2 anos na religião. Muito embora seja pouco, minhas experiências foram bem marcantes e me amadureceram rapidamente. Claro que a "veia" de pesquisa me ajudou muito, mas muito do exposto aqui foi orientado por questões que eu tinha na época. Depois do começo desse blog já saí de 2 terreiros e estou no terceiro. Nas duas primeiras casas vivi situações que me marcaram muito, no sentido negativo. Entrei para o terreiro onde estou há quatro anos pela simples necessidade de estar integrada a uma corrente, não por convicção. Era melhor estar em algum lugar que em nenhum, mesmo que a minha vontade fosse, novamente, de sumir da umbanda. Mas eu já tinha vivido o suficiente para saber que a fuga não era o ideal, então encarei um novo desafio, uma nova casa, já quase na certeza de que se eu abrisse a boca para falar sobre minhas vivências eu sofreria, novamente, tudo o que já havia sofrido anteriormente. Então entrei muda, estranha, alheia e compenetrada apenas em mim mesma, fingindo que eu era "tábula rasa". Não foi fácil, tanto que depois de 6 meses me afastei e fiquei fora por 3 meses. Ninguém perguntou as razões do meu afastamento, nem me procurou ou veio falar comigo. Eu também não estranhei, porque eu não falava com ninguém, além de uma amiga (desde o primeiro terreiro e que também estava lá) que na época também estava afastada por causa da gravidez. Simplesmente fui retirada dos grupos de contato e me dei conta já um mês depois disso ter ocorrido. Não estranhei e nem fiquei triste, era melhor o silêncio que as experiências anteriores. Sei que meses depois desse silêncio, fui novamente "despertada" por uma outra amiga, de outra casa em uma conversa. Resolvi que era hora de voltar as atividades do centro. Escrevi ao dirigente solicitando meu retorno as atividades. Ele pediu que eu passasse por algumas correntes na assistência e por uma sessão de mesa. E eu acho que foi nesse momento que uma "nova história começou a ser escrita".

Eu lembro da primeira vez que fui na sessão de mesa, antes de retornar aos trabalhos no terreiro. Foi estranho, mas ao mesmo tempo ótimo. Mesmo com todas as minhas reticências às sessões de mesa que remetessem ao espiritismo, saí com uma sensação de bem estar tão grande que senti, intimamente vontade de participar das sessões, mas como médium. Quando retornei e soube que uma vez a cada mês os médiuns deveriam participar das sessões de mesa, fiquei feliz, muito embora com receios. Tudo por causa de uma parte da sessão, após o estudo, onde alguns médiuns iam para a mesa de psicografia. Mas fui um dia lá para saber como era, esperando que eu não fosse para a mesa de psicografia. Ledo engano. Fui para a mesa, recebi uma mensagem, com nomes de pessoas e situações e senti medo de expor. Vai que era verdade? No final da sessão as pessoas liam as mensagens recebidas e eu não li. Conversei com o médium que dirigia a sessão, hoje meu padrinho na casa, para tirar algumas dúvidas, pois eu mesma não tinha certeza do que ocorrera ali. Um mês depois retornei e, dessa vez, encorajada pelo meu padrinho li a mensagem que recebi. Eu, desconfiada, enquanto lia prestei bem a atenção nas expressões que meu padrinho fazia e notei que era uma expressão diferente da que ele fazia na leitura de outras mensagem. Naquele dia mesmo, não sei porque, me senti à vontade para conversar com meu atual padrinho sobre a mediunidade, sendo que eu mal o conhecia na época. Depois eu fiquei dias preocupada, me questionando se deveria tê-lo feito, mas hoje não me arrependo.

Não tardou para que um compromisso mensal, se tornasse uma rotina semanal. Em parte por incentivo de meu padrinho, em outra parte por ter visto ali a chance de "doutrinar" algo que já tinha me criado muitos problemas. Era bom poder falar e trocar experiências sem ser julgada, ter alguém que ouvisse e procurasse, na medida do possível, ajudar e isso foi fundamental para mudar toda uma trajetória. As sessões de terreiro ainda eram o local onde eu me escondia por medo, mas nas sessões de mesa eu podia ser o que eu era sem medo, ou quase sem medo. Lá eu estava segura, enquanto em outros espaços da casa eu ainda não tinha plena segurança.

Eu era um bicho do mato quando cheguei lá, com medo até da sombra. E me espanta hoje ver como eu mudei nos dois anos que frequentei semanalmente aquela sessão. Ali aprendi a doutrinar a minha mediunidade. Fui tratada nas sessões de cura, recuperei meu equilíbrio e cicatrizei muitas feridas. Aprendi cromoterapia e descobri que trabalhar na cura era algo muito bom. Descobri que tenho realmente afinidade com esse trabalho, muito embora eu ainda seja estabanada em muita coisa, e que não era "viagem" daqueles que me alertaram sobre isso anteriormente, como eu pensava antes. A única coisa que lamento hoje foi ter perdido as chances de trabalhar com o mestre nas macas, se eu pudesse voltar no tempo, teria feito diferente. Lá encontrei amigos, deste lado e do outro. E encontrei os meus padrinhos, uma relação que foi construída por dois anos e, por isso, fiquei muito feliz de formalizar isso, esse ano, para todo o terreiro. Perdi um pouco da reserva em relação ao espiritismo, pois vi que espiritismo e umbanda podem caminhar juntos no mesmo espaço, que são complementares e, arriscaria dizer, até mesmo necessário que seja assim. E lamento que eu tenha visto tantos médiuns da mesma casa que eu, e de outras casas, que não consigam ver isso. Enfim, foram essas sessões que permitiram que eu, hoje, reconstruísse uma parte de uma história que até então eu não entendia.

E porque essa postagem hoje, porque hoje, diferente dos anos anteriores essa rotina de trabalho foi quebrada. Na verdade já estava quebrada, mas é sempre ao retomar uma rotina e hábitos que percebemos com mais força a falta. Em função de várias mudanças na casa, as sessões de cura acabaram e a sessão de mesa passou a ser uma vez no mês e não mais às segundas-feiras. Hoje é segunda-feira e senti falta da minha antiga rotina e foi isso que me fez refletir. E essa reflexão vai em duas direções: uma a tristeza de ter essa rotina modificada tão repentinamente; outra pela alegria de poder ter vivido esses dois anos ali. Por mais que a rotina não seja mais a mesma, que exista materialmente uma "falta", eu não sinto dessa forma. Hoje foi como reviver, tornar presente novamente os dois anos dessa rotina, analisar, rever, recompreender. E juntar peças que eram anteriores a essas sessões, mas que se não fossem elas eu não conseguiria juntar. Esses dois anos são eternos, porque sempre estarão presentes no que sou hoje. E por um bom tempo eu ainda retornarei as sessões de mesa nas segundas-feiras, mesmo que não seja mais materialmente assim. E por isso ao pensar em quanto eu mudei desde o começo desse blog, me espantei ao reler a fala com a qual comecei ele, porque hoje é desses dias de "soma de tudo o que foi". E hoje sei que "não me perdi no tempo" e sei com um pouco mais de certeza "para onde devo andar".

São coisas assim que fazem com que alguns momentos sejam eternos em si mesmos. 

Finalizo o post com uma música aparentemente boba do Tomaz Lima, que faz parte de um dos meus cacos não expostos aqui (senão ia virar memorial e não postagem de blog), mas que hoje também fazem mais sentido, a música e o caco (rs).


26 de jan. de 2016

Documentário Devoção

Fazendo um revisão do Blog e de todas as coisas que li e assisti desde então, me espantei com o fato de não ter ainda colocado aqui nenhum parecer sobre o documentário Devoção de 2008, dirigido por Sérgio Sanz. Me espanta porque já vi esse documentário várias vezes, o que significa que ele está na lista dos bons documentários sobre sincretismo e religiões afro-brasileiras.

Lembro que ao assistí-lo pela primeira vez me chamou a atenção, em especial, a escolha de Santo Antônio para exemplificar a forma como o sincretismo se construiu e se constrói na religiosidade brasileira desde os tempos coloniais. Não preciso explicar aqui as razões pelas quais Santo Antônio é querido por mim, já expliquei isso alguns anos atrás nessa postagem aqui.

Considero um bom documentário para quem busca entender as origens do sincretismo. Segue o Vídeo:



Há também esse endereço com o filme em melhor resolução:
https://www.youtube.com/watch?v=GzNA9JP45G8

Para quem deseja ler um pouco mais sobre o papel de Santo Antônio no Brasil colonial, bem como se inserir um pouco mais no imaginário "místico" da época, recomendo a leitura complementar do artigo: Santo Antônio na América Portuguesa: Religiosidade e Política.

25 de jan. de 2016

Umbanda -João de Freitas

Ganhei esse livro de presente do meu marido, que apesar de não ser da religião, muito tem me apoiado todos esses anos, principalmente em minhas pesquisas. De início não o levei muito a sério, pois nunca tinha ouvido falar. Me impressionou logo o estilo rebuscado e antiquado da escrita, eu classificaria mesmo como brega, mas alguns pontos me chamaram a atenção e me estimularam a continuar a leitura: 

O primeiro fato foi perceber que o autor é um jornalista espírita e simpatizante da umbanda, o que explica diversas comparações narrativas de observações em terreiros com passagens de clássicos do espiritismo como Léon Denis. Não é muito comum em literaturas sobre a religião situações de aplicações claras e coerentes, até, de teorias espíritas com praticas umbandistas. 

O segundo fato é a data do livro. Ele foi escrito na década de 40, antes de estourar a segunda guerra mundial. Isso por si só já torna a narrativa (brega) digna de leitura, pois os episódios ali narrados retratam uma umbanda que provavelmente não vemos mais nos dias atuais. E eu estava certa! Eu que adoro curiosidades, me espantei ao saber que o ataque a Pearl Harbor e que marcaria a entrada dos EUA na segunda guerra foi anunciado no Brasil no dia de N. Sra, da Conceição, sincretizada com Oxum. Esse dado rendeu uma narrativa curiosamente paradoxal, já que Oxum é conhecida pela amorosidade. rs

Outro dado interessante é uma extensa relação de letras de pontos de umbanda que praticamente não se escutam mais em terreiros (pelo menos eu não ouvi nos terreiros que já passei e foram só três). Algumas vezes desejei que o livro viesse com uma fita K7, que é a coisa mais antiga que posso pensar conter uma gravação caseira, dos pontos ali escritos. Alguns detalhes rituais sobre como se confirmavam pontos riscados, etc. também me chamaram a atenção.

Segui a leitura, muitas vezes lutando para a falta de empatia em relação ao estilo não fosse um impeditivo. Venci a batalha e valeu a pena. O livro tem um valor muito mais histórico que doutrinário e, para pessoas que como eu gostariam de possuir uma máquina do tempo (risos!) Vale muito à pena a leitura.

Na maior parte das narrativas históricas sobre a religião encontramos como pontos centrais de um lado o conflito político entre umbandistas e polícia, do outro lado o conflito entre umbanda e o candomblé que na época era legitimado por meio de diversos estudos antropológicos. João de Freitas faz algo diferente: partindo da aceitação da umbanda como uma expressão brasileira do próprio espiritismo, ele parte em busca de diferentes terreiros, tal qual repórter investigativo, a fim de narrar tudo o que vê. É um texto de valorização da religião, o que pode ser considerado inovador para a data em que foi escrito. O único momento em que algum conflito é mencionado é na ocasião da visita de Joãozinho da Gomeia que seria preso 48 horas depois de ter sido recebido pomposamente em um terreiro de nome Cobra Coral. 

Há também longas citações a trabalhos da época sobre a religião que são citados, livros e textos pouco conhecidos no universo umbandista atual. Um deles detaco aqui:

Antes de iniciar os trabalhos, um cambono e uma samba especial acompanhavam, contritos, a Babá que cruzava o terreiro que fora instalado justamente embaixo daquela frondosa mangueira. O silêncio era absoluto. A concentração era de tal forma que nem o coaxar das rãs produzia eco. E um magnífico defumador, transformando como por encanto os nossos pobres espíritos, saturados das lutas cotidianas, passava sôbre as nossas cabeças. 
"O perfume é a quintessência de todas as manifestações de Vida"!
E é Waldemar Bento, o crente sincero e autor de "A Magia do Brasil" que, à página 114, discorre sôbre a magia do perfume:

"Aspirar determinado perfume é aspirar em essência a própria Vida de uma flor. Mediante a Sublime Lei do Sacrifício sempre hão de existir flôres na natureza prontas ao Sacrifício das distilações para dar ao homem o ensejo de se avizinhar do Criador.
A escala musical dos perfumes tem início no Infinito, para terminar em Deus!
Defumar um ambiente é o mesmo que prepará-lo para o descenso das divindades.
A palavra dos Manes Sagrados é luz, inscrita em pautas aromáticas.
O Perfume!
Sòmente um poeta, um escritor, um místico poderão compreender a harmonia do perfume. Os perfumes constituem, no éter, escalas musicais bem definidas. Nessa escala, em ondas harmoniosas, num vai e vem incessante, o verdadeiro místico aspira e sente as melodias perfumadas que nos circundam.
O olfato físico apurado percebe-as, o psico desenvolvido sente-as visto que as espirais perfumadas do incenso elevam as nossas almas a Deus!
Existe o perfume da mulher que nos pertence, o perfume dos entes que nos são caros, o perfume da saudade, o perfume da prece, o perfume do ódio, o perfume do amor...
E cada perfume possui a sua tonalidade própria, sua música, sua magia...
Vivemos entre ondas sonoras, perfumadas e coloridas!
E a maior parte dos homens não pressente tudo isso!"
...............................................
Não fora talvez por isso a razão daquela defumação porque passamos em conjunto.
Na hora de defumar é necessário absoluta concentração e alheiamento às coisas materiais.
E agora a Iaorixá após saudar dentro do mais puro ritual todas as divindades entrega o terreiro ao ogam para que êste o mantenha sob a proteção do enviado de Xangô.

Essa longa e lírica explanação sobre os defumadores me chamou a atenção por ter me lembrado, remotamente, a relação feita por Newton entre as cores e as notas musicais. Relação que até hoje em alguns locais (Ramatis, por exemplo) se usa em tratamentos de cromoterapia. Fiquei me questionando se não haveria alguma relação, também, entre essências e cores...rs Mera curiosidade intelectual.

Outro destaque que faço é para o fato de naquela época se guardava fortes esperanças de que a produção de uma literatura umbandista, que visasse explicar os rituais e seus princípios de forma própria (sem remeter ao espiritismo ou ao candomblé) viesse coibir abusos em nome da religião. Destaco:

Ante a grandiosidade e imponência da festa que se iniciava ali mesmo, naquele batelão, o Professor Moisés não se contém e chega-se a mim:
- Não concebo umbanda sem ritual! Sou francamente do som dos atabaques, do defumador e dos pontos cantados. Sei que existe um número apreciável de divergentes, mas Umbanda sem ritual deixa de ser Umbanda. O espiritismo codificado de Kardec não faz referência a essa religião africana que no fundo é cem por cento espiritismo. O que a faz divergir é apenas o ritual do qual sou apologista. Abolíndo-o é decretar a falência dessa grande seita. Todavia não endosso fanfarronices de imbecis que inventam cerimônias que não condizem com os seus atos liturgicos.
- Conhece o ritual da Umbanda? - perguntei.
-Empiricamente, porque não existe o livro que indique com precisão a forma pela qual se deva observar o cerimonial. É uma grande lacuna a falta de ritualistas na Umbanda. É preciso que apareça um escritor que tome a peito essa iniciativa.
- Com o tempo, Professor, talvez apareça...
- Talvez é sinônimo de nunca....
- Menos pessimismo, Professor! Com a criação da Federação de Umbanda, a cuja frente se encontram homens de talento, oradores notáveis, médicos, literatos de renome....
- Assim podemos prescindir do valioso concurso dos babalorixás dispersos que pululam pelas esquinas e enchem as mesas dos cafés. Ficaremos livres dessas literatrices prolixas e decepcionantes que se escondem em oratórias e formas vocabulares em evidente oscilação intelectiva. Em suma, acabar-se-ão os charlatães, porque ninguém se arvorará em chefe de terreiro sem estar devidamente munido de credenciais. Queira Deus que isso se torne em magnífica realidade.

Mal sabem eles que 60 anos depois as coisas não mudaram tanto assim...rs

Enfim, espero que com as citações mostradas, além da análise feita, eu consiga despertar alguma curiosidade a respeito do livro. Não sei quantas edições foram feitas desse livro. A que tenho em mãos é a oitava edição pela editora ECO (desconhecida para mim até então) feita ainda no Estado da Guanabara, para ter noção do quanto é "antiguinho" o livro. No mínimo, o que tenho em mãos saiu do prelo na década de 70. Meu marido deve tê-lo encontrado em algum sebo ou feira de livros usados. Por isso recomendo a procura dele, caso alguém se interesse, com livreiros online. O Estante Virtual é um bom site para isso!