Me deparei com um capítulo riquíssimo do Livro "Repensando o Sincretismo" do Ferreti, que versa sobre como o sincretismo fora visto na literatura acerca das religiões afro-brasileiras. Ao final do artigo, encontrei um debate extremamente interessante e que me fez repensar a questão dentro da experiência que tenho como umbandista. Em 6 anos de umbanda estou hoje na terceira casa, onde farei 3 anos em Abril. Neste trajeto tive contato com casas antigas que mantém suas tradições há 80 anos, outras que buscavam se situar no meio do caminho entre a umbanda e o candomblé (cuja principal dificuldade não vale mencionar aqui), além de ter conhecidos umbandistas com diferentes práticas. Isso me ajudou (e ajuda) muito a compreender a unidade que existe em nossa religião e aceitar a diferença e variedade que há entre as práticas e cultos que encontramos hoje.
Ao ler o final do capítulo 'Revisão da Literatura Sobre o Sincretismo' , a partir da crítica à Patrícia Birmam, me deparei com a questão: "os antropólogos definiram o que é a pureza de um ritual afro, ou apenas buscaram dirigentes de terreiros tradicionais para suas pesquisas?" Ferreti aceita a segunda alternativa. Porém, eu, umbandista praticante e investigativa, que nunca me detive apenas à "fé cega", muitas vezes admirada por alguns dirigentes, tenho dúvidas quando penso nos inúmeros e infinitos diálogos que já participei sobre o tema, com pessoas diferentes. O efeito que os textos acadêmicos têm sobre a concepção de religião dos praticantes de "religiões de matriz afro" não é hoje nula como era no início das pesquisas feitas por antropólogos. Mesmo que eu concorde com Ferreti quando ele diz que os primeiros terreiros pesquisados foram selecionados devido ao prestígio que tinham em suas regiões, o cenário que encontramos hoje é bem diverso do encontrado nas décadas de 30, 40. Hoje, não raro, vemos um umbandista ou praticante do candomblé procurar textos acadêmicos para nortear parte de sua compreensão religiosa. Parte, porque são poucos os trabalhos que trazem em seu corpo "fundamentos", "awô" reservados apenas aos iniciados. No entanto a compreensão geral do que é legítimo ou não em uma religiosidade de matriz afro é buscada, também, em textos acadêmicos.
Em várias discussões sobre umbanda realizadas em fóruns sociais tive a oportunidade de ver brigas (sim, brigas mesmo!) sobre que elementos seriam válidos ou não na umbanda. Tal discussão remete diretamente à questão do sincretismo, característico da religião. Há, de certo modo, um sincretismo institucional e legitimado por diversos trabalhos clássicos (Nina Rodrigues, Bastide, etc.), o sincretismo católico. No entanto, há outras formas de sincretismos que são constantemente negadas (ciganos, linha do oriente, etc.), sendo motivo para acusações de "invencionices" e tema de brigas. Mas, na verdade, não é sobre essas discussões infinitas que pretendo dissertar aqui, até porque, entre praticantes da religião as discussões sempre são bem mais complexas que as que podem ser expressas em textos acadêmicos, já que o critério de coerência ultrapassa o exigido pela academia formal...rs

O fato é que a existência de textos acadêmicos que tentam traçar, por meio de etnografias, modelos pelos quais uma prática é mais ou menos legítima que a outra, que tentam buscar unidade com alguma "origem", identificar influências e investigar até que ponto elas são uma aculturação ou resistência étnica, serviu, ao longo dos anos, para dar um "norte" para legitimar cultos antes proibidos. O que era negro e excluído, passou a ser "patrimônio cultural" respeitado e legítimo. Dentro desta "busca" por seu lugar e pelo seu espaço, as etnografias foram e são peça importante! Tão importantes que os próprios praticantes as buscam para tentar entender melhor "o seu lugar" dentro do contexto social geral e dentro, também, de uma cosmologia própria, traçada por Verger, Bastide, Elbein, e legitimadas pelos dirigentes dos terreiros pesquisados. O que faltava, politicamente, como léxico legitimador de uma prática religiosa para a sociedade, foi preenchida pelas etnografias que destacavam a "função" social geral dos terreiros.
Na umbanda e nos estudos sobre umbanda, ainda encontramos muita diversidade, mais separação que união e um ícone, inquestionavelmente, contribuiu muito para que a umbanda fosse vista como religião e não como mera prática de feitiçaria: Zélio Fernandino de Morais. Hoje é praticamente impossível estudar a umbanda sem tropeçar neste nome, e sua influência é tão forte que há, até mesmo, certa tentativa em buscar as raízes de Zélio em vários terreiros. Tal é a tentativa do autor do Blog Registros de Umbanda, que traz uma ótimo material sobre a história do da umbanda e seus terreiros mais antigos, porém focado na imagem de Zélio como principal ícone. Há no Blog até mesmo questionamentos sobre a ligação de Zélio com dirigentes de outros terreiros importantes no país, como a Tenda Mirin. O trabalho do Blog, que resultou em um livro é importante e válido, mas me parece seguir a mesma lógica de legitimação de terreiros que mencionei anteriormente: buscar raízes, traçar um modelo para depois verificar o que são as variantes, etc.
O assunto não se esgota aqui e o intuito dessa postagem era apenas registrar a identificação deste
movimento em busca de legitimidade (por meio de raízes) que teve sua origem nas etnografias sobre o candomblé no Brasil, e que estão se repetindo nos estudos de umbanda. Pontuando isso, tendo a concordar com as críticas feitas por Patrícia Birman (se essas foram descritas corretamente por Ferreti em seu texto). Mesmo que as etnografias tenham sido feitas apenas com objetivos acadêmicos, o seu uso, com o passar dos anos, não se restringiu à academia. É inegável a importância que estes estudos tiveram politicamente e socialmente para a legitimação de uma religiosidade que era historicamente perseguida. Não foi sem a ajuda dos etnógrafos que os praticantes das religiões de matriz africana conquistaram o seu espaço social. Assim, a figura do etnógrafo não é (e não foi, principalmente neste caso) apenas a de um observador que descreve fatos, ele ajudou a construir o espaço social que essas religiões possuem hoje, de tal modo que este "espaço" serve de "modelo" para o que é aceito ou não. Neste mesmo movimento a umbanda busca seu espaço legitimador, na contramão das acusações de "bagunças", tentando se desvencilhar do esvaziamento que os debates sobre "sincretismo" parecem trazer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário