Esta postagem dedico a uma amiga, com quem tive uma conversa incômoda, mas que muito me fez refletir sobre o tema.
Quais são as razões que fazem com que adentremos a uma religião? Até onde a razão pode interferir no sentimento religioso? E, principalmente, até onde a fé raciocinada é ou não nociva ao sentimento religioso?
Essas foram as questões que permearam nossa conversa, cujo tema específico não cabe expor neste espaço. Mas cabe neste espaço, expor as reflexões que se seguiram da conversa, sobre as questões acima mencionadas. Subjaz a este debate conceitos de alienação e dominação, por razões que mais a frente exporei melhor.
Na prática, conversa começou por causa da interpretação de um termo, que gerou certa revolta nesta amiga. Inicialmente ela considerou injusta a falta de informação a respeito, entendendo o termo no sentido usual do candomblé. Estava em jogo nesta conversa o uso de elementos materiais na umbanda, se necessário ou desnecessário.
Tentava eu, na ocasião, explicar a ela que os elementos materiais não são utilizados no sentido literal dos termos que são denominados: “dar comida ao santo”, “botar a entidade pra fumar”, e outras expressões que geram equívocos. Umbanda envolve mais que o simples uso de elementos materiais, mas sim a preconcepção de que todas as coisas existentes possuem energias diferenciadas e que podem ser manipuladas com um propósito. Assim como a luz do sol alimenta as folhas de uma planta e gera vida, assim como a terra pode ser usada tanto como solo para a produção de alimentos quanto para a cura, por meio da argila e tantas outras coisas na natureza podem ser transmutadas na prática cotidiana com uma finalidade específica, na umbanda nossas entidades transmutam as energias destes elementos com determinado fim.
Certa vez, alguns anos atrás, lendo o “Tratado de Magia” de Giordano Bruno, a fim de entender o chamado “animismo” do mundo, me deparei com a afirmativa que os elementos da natureza se integravam (como a água e o açúcar) ou se repeliam (como água e óleo) de acordo com a “lei da afinidade” entre os elementos. Minha surpresa ao ler tal afirmativa está no fato de não haver mais hoje, a concepção do universo todo como animado de Bruno, a ponto de se conceber “afinidades de ânima” entre as coisas materiais. Assim Bruno explicava porque certos elementos químicos se uniam e outros não. Porque certos metais podiam ser fundidos com bons resultados e outros não, e todas as demais coisas que, nos dias atuais, encontram outra justificativa que não a lei da afinidade.
Poderíamos situar nossas entidades neste pensamento antigo, onde todas as coisas materiais respondem, em seus ânimos, a certas afinidades e contrariedades. Trabalham assim o uso de certos alimentos a um orixá específico, e especificam a impossibilidade do uso deste alimento para este mesmo orixá como “kizilas”. Do mesmo modo, o ânima, ou a energia presente em certos elementos, favorecem certos aspectos anímicos aos filhos de um orixá e não de outro. Isso pode explicar, por exemplo o uso de determinados elementos ou de determinados alimentos em certos rituais, considerados fundamentais na vida religiosa de um adepto de umbanda e candomblé.
Um exemplo de como tais energias podem atuar, mesmo que o uso seja indireto (ou seja, que não toque o corpo do adepto) é pela energia circundante. Quando defumamos um ambiente, por exemplo, trabalhamos a energia circundante. Ao colocarmos um copo de água ao lado da vela do anjo da guarda, trabalhamos a energia circundante. O mesmo pode ser referido a todas as demais firmezas que cercarão o ambiente do adepto na hora do rito.
É um processo Magistico, e Bruno bem sabia que a grande magia envolvida nisso é a magia natural, própria ao universo, sem nada de possuir de obscuro ou que já não esteja presente no nosso dia-a-dia.
Um exemplo simples para ilustrar o que digo é o ato diário de preparo de um alimento. Porque certos temperos caem melhor com um alimento que com outro? Porque alguns alimentos são servidos frios e outros quentes? Porque usamos o calor no preparo dos alimentos? Porquê alguns alimentos são mais saborosos, ou mais saudáveis se servidos de uma forma e não de outra? Ou ainda: Porque alguns perfumes são melhores e mais agradáveis a uma pessoa que para outra? Porque alguns perfumes mudam seu cheiro quando passamos no nosso corpo e não mudam no corpo de outra pessoa? Etc, etc. Usamos essa “magia natural” o tempo todo sem percebermos.
Existem explicações científicas para isso? Sim, decerto! Mas a nossa ciência ensinada nas escolas está muito longe de chegar às teorias estudadas hoje nas universidades. Grande parte dos físicos que estudam as partículas que comporão os elementos quimicos chegou ao ponto de não saber mais como a materialidade é composta. De onde vem a massa dos corpos? Este seria o grande avanço alcançado pela comprovação da existência da chamada “partícula de Deus” (o Bóson de Higgs), um avanço tão grande que todo o mistério da criação seria resolvido, pois ela daria materialidade ao universo.
O que deve ser mudado no praticante, em relação às oferendas e usos de elementos materiais, é a forma de usar. Se cada qual cuidasse para que suas oferendas e obrigações não se tornassem lixo, elementos que poluem e agridem o meio ambiente, já teríamos maior facilidade de aceitação aos olhos daqueles que não coadunam de nossas crenças. Cabe ao praticante de umbanda criar uma consciência não apenas ecológica, mas religiosa também. Afinal as matas, praias e cachoeiras são nossos templos, assim como o terreiro é um templo. Se mantemos o terreiro limpo, porque não manter limpos também os templos fornecidos pela natureza? Esta é outra questão que, apesar de envolver o uso de elementos materiais, não tem relação direta com o porquê de se usar elementos materiais nos rituais.
Onde entra o sentimento religioso, a fé, a fé raciocinada, e a razão nesta história toda?
O adepto de uma religiosidade qualquer, não apenas a umbanda, adentra a uma religião por um sentimento religioso que precede à interpretação racional. Aliás, grande parte das interpretações são fundamentadas em uma crença. Um exemplo que dei a esta amiga com quem conversava foi o de Martin Lutero quando resolveu se contrapor a política religiosa de uma época e traduzir as bíblias para o alemão, para que a população tivesse acesso aos textos religiosos e assim escapasse à dominação e alienação imposta por um sistema religioso falido. Sua base foi, basicamente, um sentimento religioso, uma concepção do que seria o cristianismo e que se opunha àquelas preditas pelo Clero. Foi a partir dele que a comunhão dos cristãos passou a ser, também, um ato que envolve o perdão e fortalecimento da fé. Antes o perdão era vendido em praças públicas pelas indulgências. Com base, não só dos desvarios políticos da época, mas também em suas convicções religiosas, que não se limitavam à mera interpretação dos textos e ritos bíblicos, mas principalmente no sentimento religioso, a chamada “fé” no que sentia, conseguiu mover montanhas, promover a reforma da igreja e fundar o que hoje conhecemos por protestantismo. A razão apenas auxiliou na construção de suas teses, para que pudesse expor de forma racional aquele sentimento que movia as suas ações e sua fé nos textos sagrados.
O sentimento religioso é um afeto que moverá o que chamamos de fé, a fé raciocinada é a fé auxiliada pela razão na justificação de uma crença, mas a razão sozinha é vazia. alienada. Interpretar textos sem ser acometido pelo afeto que nos leva a crença, é como operar uma máquina, produzir um calculo sem finalidade, é alienação. A interpretação pela interpretação é fria e não justifica nenhuma crença com força, a menos que preceda à interpretação o sentimento religioso ao qual me refiro.
O Adepto de umbanda sente a função dos elementos materiais, mesmo que, muitas das vezes não possa justificar seu uso de forma racional. Ele sente, tal como Bruno sentia, a conexão íntima entre todas as coisas, que justifica o uso de cada um destes elementos. A razão, a fé raciocinada, é recente no movimento umbandista. Por ter uma origem tribal, sejam tribos africanas ou tribos indígenas, não é usual expor em teorias este sentimento, até porque não é necessário. O necessário apelo à razão não é dado aos homens de tribos e sim aos “doutos” herdeiros de toda uma tradição onde o dogma se dá por escrito, antes mesmo que o sentimento religioso seja despertado. É assim que colocamos nossas crianças em catequeses e escolinhas doutrinárias das igrejas, puro condicionamento cultural alienado. É assim que nos criamos e crescemos achando que “despacho de macumba” é coisa de ignorante, ou coisas do mau. Esquecemos e somos educados para esquecer, desde cedo essa interconexão íntima existente entre as coisas, considerando-as apenas ilusões de mentes menos “favorecidas intelectualmente”. Somos educados a agir mais que a sentir, a falar mais que a ouvir, e assim por diante!
A educação nos tempos antigos, na época dos “bons selvagens” de Rousseau, era exata a contrária. Um caçador só conseguia exercer sua função se aprendesse a sentir a mata, a ler o bater do vento nas folhas, os rastros do chão, o movimento feito nas plantas rasteiras que lhe indicariam o melhor caminho para a caça. Não havia técnica? Sim, havia. Uma técnica muito, mas muito diferente da nossa, tão diferente que chega a ser estranha e de difícil compreensão aos nossos olhos! A razão, o raciocínio envolvido na caça era guiado pelos sentimentos e pressentimentos que o movimento da mata gerava. Acho que este era o elemento fundamental que fazia Rousseau romancear os seus "bons selvagens".
A fé move montanhas, mas o sentimento religioso é quem move a fé. A fé só é cega quando se torna mera repetição, sem finalidade ou algum “pathos” (paixão) que mova nossos gestos. A fé cega é objeto de alienação e de dominação, religiosa, cultural e social. Lutero bem notou isso e lutou contra, traduzindo as Bíblias em alemão para que cada membro da sociedade pudesse ler e ser tocado pelo "pathos" ao qual me refiro. A fé raciocinada é quando não nos limitamos a repetir, mas a buscar sentido e justificação para os nossos sentimentos e crenças! Agora, só raciocinar, sem nenhum “pathos”, nenhuma fé, nenhum sentimento religioso, é agir de forma fria e dada a todos preconceitos que esta herança ocidentalista nos impõe. Até mesmo a interpretação inconteste é alienada e pode ser usada como instrumento de alienação!
O lado bom da História é saber que nem sempre foi assim. Que homens lutaram e brigaram para instituir o que Hoje nos é dado pronto como “verdade”. E melhor ainda é pensar em quantos e tantos guiados pela sua fé, acompanhada pela razão, não foram queimados e subjulgados por inquisidores, por tentarem justificar publicamente suas "verdades". E tantos outros que só puderam compor uma obra por herança. E tantos mais anônimos, esquecidos nas páginas da História, que vivenciaram sua fé e razão a contragosto dos padrões instituídos, os chamados excentricos!
E isso não apenas em religião, mas em ciência também! O Bóson de Higgs, ao qual nos referimos aqui como a “partícula de Deus” é apenas uma hipótese, algo cuja existência não foi provada e os efeitos supostamente identificados. Apesar disto, bilhões e bilhões são movidos para pesquisas acerca desta partícula.... É a fé, a mesma fé despertada por um "pathos", um sentimento ou pressentimento, movendo não apenas montanhas, mas milhões de euros. Este exemplo serve para fazer ver que a “fé” não é privilégio das religiões... que o sentimento ao qual me refiro, nada tem de místico no sentido dos livros de auto-ajuda, mas trata-se de algo real, mais comum do que pensamos.
Basta saber se, quando agimos, quando julgamos, quando justificamos algo, o fazemos por repetição de padrões preditos e fixados em nossas mentes desde a infância (alienação), ou se somos autônomos diante de nossas crenças, convicções e, conseqüentemente, ações. O adepto de umbanda que simplesmente repete, não é autônomo. Mas aquele que compreende intimamente, mesmo que por pressentimento, o sentido e a finalidade do rito, este sim é autônomo em relação à sua fé e à sua prática.
Nos dias atuais nada mais difícil que tornar a razão uníssona com os sentimentos! Às vezes pressentimos algo que contestam nossas concepções, e reagimos com preconceito e fuga. Mas mesmo fugindo e negando, continuamos incomodados e tristes, pois intimamente o sentimento lateja, não some com a fuga, mas persiste insistindo em dizer que é ali o lugar de nosso "pathos", que é ali onde nos encontraremos.
Termino essa postagem citando um trecho do Pequeno Príncipe, que apesar de conhecido como “livro de Miss” (risos!) traz algumas verdades que devem ser guardadas.
"Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade, mas tu não a deves esquecer." (Antoine de Saint-Exupéry)