De forma doutrinária, o espiritismo não exerce e nem pode exercer influência sobre a umbanda, mas, quando muito, auxiliar a compreensão do médiun (ou cavalo, como nossas entidades costumam falar) sobre o processo envolvido nas manifestações dos terreiros, e sobre as formas como nossas entidades podem atuar sobre nós.
Algumas postagens atrás, por exemplo, tratei dos sonhos e sobre como os sonhos nos trazem, algumas vezes, mensagens de nossos guias espirituais. Naquela postagem, mencionei tanto o texto de Kardec, quando explorei o tema no sentido mais primitivo da concepção usando um documentário indígena como exemplo. Mesmo que tenhamos usado a letra de Kardec para explicar o fenômeno, isso não faz com que o fenômeno seja “uma influência” do kardecismo. O próprio espiritismo é claro quanto a sua proposta esclarecedora acerca dos fenômenos da espiritualidade: mediunidade e comunicação com espíritos, sempre existiram desde os tempos mais antigos. A diferença é a forma como se explica o fenômeno. Com o avanço do conhecimento, o estudo do livro dos médiuns, hoje, é o meio mais adequado para explicar tais fenômenos.
A verdade é que com o passar dos anos e o desenvolvimento das culturas ocidentais, o seu voltar para a tecnologia e questões materiais de sobrevivência, coisas que nas culturas mais simples eram encaradas com naturalidade se tornam, aos olhos do homem urbano, trabalhador de uma empresa, que opera cotidianamente com alta tecnologia, elementos simbólicos e mitológicos de culturas já extintas. Difícil, nos tempos atuais, é encontrar alguém que acredite na real influência dos espíritos naturalmente. A crença até existe, mas é sempre colocada como digna de desconfiança no primeiro percalço.
O homem de hoje dificilmente olha para si mesmo e para a comunidade como parte de um todo, coisa que nas culturas ditas “primitivas” era condição para aquele que desejava pertencer à comunidade. Os filhos pertencem aos pais e a sociedade, de modo geral, não se sente responsável pelas crianças nos tempos atuais. Já na sociedade tribal, os filhos pertenciam à família, mas também à comunidade e a comunidade toda era responsável pela integração daquele membro no grupo. A comunidade é como um corpo, do qual cada indivíduo é membro. A ofensa a um membro da sociedade por alguém de fora era vista como uma ofensa a todo grupo social. Hoje em dia somos os primeiros a ignorar, desprezar e ofender àqueles que estão inseridos no mesmo grupo social nosso. Vemos isso cotidianamente, nas ruas, nas escolas, nas empresas, no mesmo prédio e até mesmo no seio familiar. Mas não é objetivo, aqui, culpar a esta “falta de sensibilidade social” pela dificuldade na compreensão de fenômenos simples. Este mal de nossa sociedade é, antes, um efeito da perda de contato do homem com qualquer coisa que não lhe sejam dada aos sentidos.
O homem de hoje respira sem consciência do processo envolvido na respiração, a menos que pegue um resfriado. O homem de hoje não caminha, não suporta o vento e a chuva. Muitos julgam que as árvores fazem sujeira nas cidades e que seus frutos só servem para amassar os carros. Preferem ver a praia de longe, sem ter contato com o sal do mar, e constroem piscinas a beira mar. Gostam da mata, mas preferem-na como descanso de tela de seu computador que sujar seus sapatos com terra e sofrer mordidas de mosquitos. O homem atual, sai de sua casa, entra no seu carro e sai do carro para o prédio onde trabalha e mal consegue olhar para o céu (a menos que queira saber se vai chover). Enfim, possui hábitos completamente distintos daqueles que habitam tribos, ou, nem precisamos tanto, possuem hábitos distintos de nossos avôs e bisavós.
Obesidade, hoje, é um problema e a menos de 100 anos o número de obesos era mais de 50% menor. As pessoas, por razões óbvias, eram menos sedentárias e sabiam aproveitar mais os espaços livres e arborizados das grandes cidades. Olhar o céu era programa o dos apaixonados.
O homem deixou de fazer parte da natureza, da comunidade, de si mesmo. O valor de um homem é o que ele produz e o que consegue possuir com seu trabalho. Há um excesso de pragmatismo e materialismo no mundo atual. E é este o maior desafio enfrentado pelos poucos que ensejam um trabalho mais espiritual. Dizer quem em sonhos visitamos espíritos amigos, ou que algum espírito mal intencionado se aproximará se mantivermos maus pensamentos é a maior demonstração de ignorância e superstição. Por esta razão, grande parte daqueles que buscam e adentram os terreiros de umbanda, o procuram por necessidade. Quando as coisas já estão a tal ponto que, a última alternativa é apelar para o desconhecido “pra ver ser” dá certo.
Neste momento, geralmente confuso para a grande maioria, é que o estudo dos textos de Kardec pode auxiliar. De forma menos “mística” que as pitonisas gregas, ou tupã, ou ainda qualquer dos orixás que louvamos, Kardec mostra ao homem “de razão” como é possível que o invisível aos olhos nos influencie e, mais importante, como podemos cuidar para que essas influências sejam benéficas.
Para o praticante de umbanda, aquele que entra no terreiro com o branco para iniciar o contato com suas entidades, torna-se fundamental a leitura de tais textos. Pois desmistificam o processo vivenciado nas seções, em sonhos, e em outros momentos da vida do “médiun”. É importante para o trabalhador de umbanda de hoje compreender o que ocorre consigo mesmo, já que no cotidiano a realidade se mostrará completamente avessa ao ambiente do terreiro. O terreiro é como um mundo paralelo, onde devemos nos abrir e vivenciar o entorno como o homem antigo vivia, como o homem tribal vivia.
O homem tribal, além da relação que estabelecia com todos os membros de sua comunidade, estabelecia uma relação, também com a natureza que o cercava. Entendia as Matas como um ser vivo, capaz de enviar sinais à comunidade. Lia a mensagem que os ventos traziam pelo tato e olfato. Todos os poros do corpo do homem da tribo estavam conectados (não era preciso cabos como em AVATAR - risos) com a natureza circundante. E assim ele conseguia pressentir os perigos e saber dos benefícios que a mata trazia. É assim que o praticante de umbanda deve vivenciar seu terreiro. Com o mesmo senso de comunidade e natureza que predominavam nos tempos das organizações tribais, sendo a comunidade o corpo mediúnico e a natureza simbolizada por nossas entidades e guias espirituais. Comportamento tão avesso aos dias de hoje!
Kardec abre uma porta, mas não determina a prática. Kardec nos ensina como é possível essa realidade, mas vivenciar esta realidade como nas comunidades tribais será ensinamento de terreiro, dado por nossas entidades chefes que representam a ancestralidade daquele grupo. O espírita sabe, o umbandista sente. Porém como a nossa sensibilidade anda, nos dias atuais, “embotados de cimento e tráfego” (citando Chico Buarque) o primeiro passo do sentir, passa pelo saber. Sabendo ser possível e como é possível fica mais fácil nos abrirmos e permitirmos que nossa sensibilidade perceba estes eventos já tão estranhos à grande parte de nossa sociedade, mas comuns aos nossos antepassados.
Neste sentido, Kardec e os demais autores espiritualistas serviriam de auxiliares, textos para ajudar do médiun umbandista na aceitação e compreensão racional dos eventos vivenciados no terreiro. Assim, fica mais fácil crer em nossas intuições, em nossas incorporações, em nossos sonhos e desdobramentos noturnos... fica racionalmente mais fácil vivenciar a prática tão comum de nossas entidades, por meio das quais a umbanda é ensinada.
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