7 de nov. de 2013

A relação indivíduo, entidade de umbanda e terreiro.

Sônia reclamava muito de seus guias, inclusive de seu preto velho, o qual, quando incorporava, jogava-a no chão, machucando-a, e resolveu um dia não recebê-lo mais se ele continuasse a fazer isso. Seu meio problema, no entanto, era seus guias não falarem. Este fato significava que não possuíam, não incorporavam integralmente o cavalo, ficando apenas encostados nele. 
Essa preocupação de Sônia reafirma o que foi dito no capítulo II sobre a identidade do médium como pessoa. Essa identidade se constrói a partir da relação do cavalo com seus guias. Se essa relação não é completa, o médium perde a possibilidade de, através dessa máscara, ou seja, de seus guias, integrar seus diversos papéis sociais. Sônia não conseguia essa relação e, portanto, não conseguia definir sua identidade como pessoa [dentro do terreiro].
Maggie,Y; Guerra de Orixá, 3a. Ed. Ed. Zahar, 2001, pp. 102,103.

Já tem algum tempo que li o livro "Guerra de Orixás" da Yvonne Maggie. Na ocasião achei o livro tenebroso. Mas depois dos últimos acontecimentos percebo que tem boas deixas a pesquisa realizada pela Yvonne. Uma delas, e a meu ver o principal, é a forma como a identidade pessoal do médium se constrói dentro da religião (e algumas vezes fora, também). Essa questão aparece na parte final do livro e é descrita de duas formas: a) a identidade se constrói pela eficiência da relação do médium com seus guias; b) a identidade se constrói pelo reconhecimento do "poder" dos guias deste médium (e consequentemente, do médium) pelo grupo.

Quando se entra em um terreiro como médium é como se começássemos uma vida nova, onde todos os nossos conhecimentos anteriores podem ser colocados em cheque a qualquer momento. Por essa razão é aconselhável ao médium novo que mude a sua postura dentro do terreiro: que seja mais receptivo, observador, que tente prestar mais atenção naquilo que se aproxima. Digamos que haja, nessa ocasião, um novo aprendizado: aprender a lidar com as chamadas "intuições" e com as energias que se aproximam a fim de saber classificá-las como positivas ou negativas. Digamos que este seja o momento "0" (Zero) do processo de aprendizagem. Usando a metáfora do filósofo Locke, no momento inicial, na ocasião do ingresso do médium ao terreiro, este deverá ser como uma tábula rasa onde as energias que cercam o ambiente possam deixar suas impressões. Eu poderia entrar aqui em diversas questões que colocariam em jogo o uso dessa metáfora, como, por exemplo, o fato de Locke ser um empirista, filosofia que parece avessa ao tipo de coisa que trato aqui. Porém, há algo a ser experimentado neste momento "zero", mas que não se parece em nada, absolutamente, com o conceito de experiência tratada pelo empirismo filosófico. Importa que, para fins didáticos, a metáfora é útil para exemplificar o que pretendo dizer.

A etapa que se segue é: ele começa a receber a energia dos seus guias, mas ainda não as identifica. Em seguida, passa a identificá-las e diferenciá-las - a energia do caboclo é diferente da energia do preto velho - antes mesmo que o médium incorpore esses guias. Esta segunda etapa é fundamental para o bom desenvolvimento do relacionamento do médium com o terreiro que o acolhe. O bom médium é aquele que sabe dar passagem à entidade certa na hora certa. Estes dois tipos de aprendizados aqui descritos são comumente chamados de "doutrina", dada ao médium para ele não cometa gafes e nem desequilibre a energia da corrente na qual ingressa.

As duas etapas são fáceis de serem atravessadas se auxiliado por um bom Chefe de Terreiro. A terceira e quarta etapas, que descreverei agora, é que são a meu ver, as mais complicadas.

A terceira etapa é o processo de incorporação. Geralmente é a primeira a ocorrer com o médium no terreiro. Normalmente neste processo ocorrerá uma repetição gestual, que fará com que o médium identifique qual entidade está incorporando, e se essa incorporação ocorre no momento correto. Exemplo: pretos velhos vem curvados, caboclos mancam e atiram flechas, Ogum porta uma espada. A variação gestual será pequena entre os médiuns de um mesmo terreiro. Aliás, esta é uma coisa interessante a ser observada: geralmente, um médium que venha de outro terreiro, terá neste processo um gestual diferente, aprendido no seu terreiro de iniciação e que servirá para o médium, individualmente, para identificação da entidade.

A quarta etapa é quando o médium começa a receber informações a respeito de suas entidades. Normalmente este processo é o mais confuso, pois nem sempre o médium está seguro dessas informações. Muitas das vezes a certeza vem, ou de um processo de repetição da informação para o próprio médium, ou da confirmação via fala da entidade incorporada, junto ao chefe da casa. Na maior parte dos casos, a segunda forma é a que dá maior segurança ao médium. Ou seja, mesmo que o processo de repetição tenha ocorrido, o médium depende da afirmativa de outro para dar segurança e "validade" àquela informação. Isso vai desde a identificação da entidade, até informações sobre situações e procedimentos específicos. Já nesta etapa, podemos identificar a dependência que o médium tem em relação ao contexto "social" onde ocorre a transmissão da informação.

A questão é que, quando o médium muda de terreiro, o seu "contexto social" muda. Nesta mudança outras podem vir a ocorrer. Há relatos de médiuns que ao trocarem de terreiro, trocaram de entidades. Há médiuns que acabam perdendo a confiança em si mesmo, como a médium retratada por Yvonne em seu livro, tornando frágil a relação com as entidades que já conhecia anteriormente. Há outros que, por vaidade, se afastam por senti-la ferida.  O fato é que dificilmente um médium passa absolutamente ileso de um processo de mudança.

Uma das coisas que contribuem para isso é a forma como, geralmente, as casas recebem médiuns que já vem de outras casas. Eles nunca, ou quase nunca, começam em uma casa nova no mesmo estágio em que pararam antes. Faz parte de um procedimento das casas um período de adaptação e "conhecimento" deste médium, para observação, garantindo, por um lado, a manutenção da seriedade do trabalho das casas e, por outro, que o médium ingressante se mostre sério e digno da confiança da casa. Este momento inicial funciona como uma espécie de "filtro" que evita que pessoas mal intencionadas ou ditas vaidosas permaneçam e quebrem a força da corrente da casa.

A questão que levanto é: como conciliar a necessidade de manter a seriedade e o equilíbrio vibratório de uma casa, com a necessidade que o próprio médium possui de reafirmar sua mediunidade e relação com entidades? Principalmente, quando as informações que o próprio médium possuem acabam sendo legitimadas pela confirmação do chefe da casa anterior, como manter essa certeza neste período incial onde tudo é colocado em cheque?

A única resposta que vejo como possível para este caso é que os médium mudem as suas posturas em relação ao desenvolvimento. Que pensem menos em confirmações externas para as informações que suas entidades passam, que aprimorem a sua percepção em relação às energias que virão a sentir, para saber, ele mesmo, diferenciá-las sem necessidade de outrem.  É um caminho complicado, mas muito necessário nos dias atuais onde a variedade de terreiros é enorme, não apenas em número, mas em formas de pratica umbandista. Caso o médium consiga esse equilíbrio interno, independente da casa onde esteja, ficará mais fácil se adaptar à contingência de uma mudança de casa, caso seja o necessário. Claro que em certas situações é necessário poder contar com alguém mais experiente, mas o médium não pode perder de vista que, mesmo a pessoa mais experiente não carrega as mesmas energias e necessidades que ele próprio. Não se trata apenas de autoconhecimento, mas de dar uma chance a um relacionamento com as entidades que não seja totalmente dependente da aprovação prévia do terreiro, tal como sentia a médium retratada pela Yvonne em seu livro. Enfim, é mais um conselho, que uma conclusão definitiva.



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