29 de jul. de 2010
21 de jul. de 2010
14 de jul. de 2010
Sentimento religioso, fé, fé raciocinada, razão (sobre o uso de elementos materiais na umbanda)
Esta postagem dedico a uma amiga, com quem tive uma conversa incômoda, mas que muito me fez refletir sobre o tema.
Quais são as razões que fazem com que adentremos a uma religião? Até onde a razão pode interferir no sentimento religioso? E, principalmente, até onde a fé raciocinada é ou não nociva ao sentimento religioso?
Essas foram as questões que permearam nossa conversa, cujo tema específico não cabe expor neste espaço. Mas cabe neste espaço, expor as reflexões que se seguiram da conversa, sobre as questões acima mencionadas. Subjaz a este debate conceitos de alienação e dominação, por razões que mais a frente exporei melhor.
Na prática, conversa começou por causa da interpretação de um termo, que gerou certa revolta nesta amiga. Inicialmente ela considerou injusta a falta de informação a respeito, entendendo o termo no sentido usual do candomblé. Estava em jogo nesta conversa o uso de elementos materiais na umbanda, se necessário ou desnecessário.
Tentava eu, na ocasião, explicar a ela que os elementos materiais não são utilizados no sentido literal dos termos que são denominados: “dar comida ao santo”, “botar a entidade pra fumar”, e outras expressões que geram equívocos. Umbanda envolve mais que o simples uso de elementos materiais, mas sim a preconcepção de que todas as coisas existentes possuem energias diferenciadas e que podem ser manipuladas com um propósito. Assim como a luz do sol alimenta as folhas de uma planta e gera vida, assim como a terra pode ser usada tanto como solo para a produção de alimentos quanto para a cura, por meio da argila e tantas outras coisas na natureza podem ser transmutadas na prática cotidiana com uma finalidade específica, na umbanda nossas entidades transmutam as energias destes elementos com determinado fim.
Certa vez, alguns anos atrás, lendo o “Tratado de Magia” de Giordano Bruno, a fim de entender o chamado “animismo” do mundo, me deparei com a afirmativa que os elementos da natureza se integravam (como a água e o açúcar) ou se repeliam (como água e óleo) de acordo com a “lei da afinidade” entre os elementos. Minha surpresa ao ler tal afirmativa está no fato de não haver mais hoje, a concepção do universo todo como animado de Bruno, a ponto de se conceber “afinidades de ânima” entre as coisas materiais. Assim Bruno explicava porque certos elementos químicos se uniam e outros não. Porque certos metais podiam ser fundidos com bons resultados e outros não, e todas as demais coisas que, nos dias atuais, encontram outra justificativa que não a lei da afinidade.
Poderíamos situar nossas entidades neste pensamento antigo, onde todas as coisas materiais respondem, em seus ânimos, a certas afinidades e contrariedades. Trabalham assim o uso de certos alimentos a um orixá específico, e especificam a impossibilidade do uso deste alimento para este mesmo orixá como “kizilas”. Do mesmo modo, o ânima, ou a energia presente em certos elementos, favorecem certos aspectos anímicos aos filhos de um orixá e não de outro. Isso pode explicar, por exemplo o uso de determinados elementos ou de determinados alimentos em certos rituais, considerados fundamentais na vida religiosa de um adepto de umbanda e candomblé.
Um exemplo de como tais energias podem atuar, mesmo que o uso seja indireto (ou seja, que não toque o corpo do adepto) é pela energia circundante. Quando defumamos um ambiente, por exemplo, trabalhamos a energia circundante. Ao colocarmos um copo de água ao lado da vela do anjo da guarda, trabalhamos a energia circundante. O mesmo pode ser referido a todas as demais firmezas que cercarão o ambiente do adepto na hora do rito.
É um processo Magistico, e Bruno bem sabia que a grande magia envolvida nisso é a magia natural, própria ao universo, sem nada de possuir de obscuro ou que já não esteja presente no nosso dia-a-dia.
Um exemplo simples para ilustrar o que digo é o ato diário de preparo de um alimento. Porque certos temperos caem melhor com um alimento que com outro? Porque alguns alimentos são servidos frios e outros quentes? Porque usamos o calor no preparo dos alimentos? Porquê alguns alimentos são mais saborosos, ou mais saudáveis se servidos de uma forma e não de outra? Ou ainda: Porque alguns perfumes são melhores e mais agradáveis a uma pessoa que para outra? Porque alguns perfumes mudam seu cheiro quando passamos no nosso corpo e não mudam no corpo de outra pessoa? Etc, etc. Usamos essa “magia natural” o tempo todo sem percebermos.
Existem explicações científicas para isso? Sim, decerto! Mas a nossa ciência ensinada nas escolas está muito longe de chegar às teorias estudadas hoje nas universidades. Grande parte dos físicos que estudam as partículas que comporão os elementos quimicos chegou ao ponto de não saber mais como a materialidade é composta. De onde vem a massa dos corpos? Este seria o grande avanço alcançado pela comprovação da existência da chamada “partícula de Deus” (o Bóson de Higgs), um avanço tão grande que todo o mistério da criação seria resolvido, pois ela daria materialidade ao universo.
O que deve ser mudado no praticante, em relação às oferendas e usos de elementos materiais, é a forma de usar. Se cada qual cuidasse para que suas oferendas e obrigações não se tornassem lixo, elementos que poluem e agridem o meio ambiente, já teríamos maior facilidade de aceitação aos olhos daqueles que não coadunam de nossas crenças. Cabe ao praticante de umbanda criar uma consciência não apenas ecológica, mas religiosa também. Afinal as matas, praias e cachoeiras são nossos templos, assim como o terreiro é um templo. Se mantemos o terreiro limpo, porque não manter limpos também os templos fornecidos pela natureza? Esta é outra questão que, apesar de envolver o uso de elementos materiais, não tem relação direta com o porquê de se usar elementos materiais nos rituais.
Onde entra o sentimento religioso, a fé, a fé raciocinada, e a razão nesta história toda?
O adepto de uma religiosidade qualquer, não apenas a umbanda, adentra a uma religião por um sentimento religioso que precede à interpretação racional. Aliás, grande parte das interpretações são fundamentadas em uma crença. Um exemplo que dei a esta amiga com quem conversava foi o de Martin Lutero quando resolveu se contrapor a política religiosa de uma época e traduzir as bíblias para o alemão, para que a população tivesse acesso aos textos religiosos e assim escapasse à dominação e alienação imposta por um sistema religioso falido. Sua base foi, basicamente, um sentimento religioso, uma concepção do que seria o cristianismo e que se opunha àquelas preditas pelo Clero. Foi a partir dele que a comunhão dos cristãos passou a ser, também, um ato que envolve o perdão e fortalecimento da fé. Antes o perdão era vendido em praças públicas pelas indulgências. Com base, não só dos desvarios políticos da época, mas também em suas convicções religiosas, que não se limitavam à mera interpretação dos textos e ritos bíblicos, mas principalmente no sentimento religioso, a chamada “fé” no que sentia, conseguiu mover montanhas, promover a reforma da igreja e fundar o que hoje conhecemos por protestantismo. A razão apenas auxiliou na construção de suas teses, para que pudesse expor de forma racional aquele sentimento que movia as suas ações e sua fé nos textos sagrados.
O sentimento religioso é um afeto que moverá o que chamamos de fé, a fé raciocinada é a fé auxiliada pela razão na justificação de uma crença, mas a razão sozinha é vazia. alienada. Interpretar textos sem ser acometido pelo afeto que nos leva a crença, é como operar uma máquina, produzir um calculo sem finalidade, é alienação. A interpretação pela interpretação é fria e não justifica nenhuma crença com força, a menos que preceda à interpretação o sentimento religioso ao qual me refiro.
O Adepto de umbanda sente a função dos elementos materiais, mesmo que, muitas das vezes não possa justificar seu uso de forma racional. Ele sente, tal como Bruno sentia, a conexão íntima entre todas as coisas, que justifica o uso de cada um destes elementos. A razão, a fé raciocinada, é recente no movimento umbandista. Por ter uma origem tribal, sejam tribos africanas ou tribos indígenas, não é usual expor em teorias este sentimento, até porque não é necessário. O necessário apelo à razão não é dado aos homens de tribos e sim aos “doutos” herdeiros de toda uma tradição onde o dogma se dá por escrito, antes mesmo que o sentimento religioso seja despertado. É assim que colocamos nossas crianças em catequeses e escolinhas doutrinárias das igrejas, puro condicionamento cultural alienado. É assim que nos criamos e crescemos achando que “despacho de macumba” é coisa de ignorante, ou coisas do mau. Esquecemos e somos educados para esquecer, desde cedo essa interconexão íntima existente entre as coisas, considerando-as apenas ilusões de mentes menos “favorecidas intelectualmente”. Somos educados a agir mais que a sentir, a falar mais que a ouvir, e assim por diante!
A educação nos tempos antigos, na época dos “bons selvagens” de Rousseau, era exata a contrária. Um caçador só conseguia exercer sua função se aprendesse a sentir a mata, a ler o bater do vento nas folhas, os rastros do chão, o movimento feito nas plantas rasteiras que lhe indicariam o melhor caminho para a caça. Não havia técnica? Sim, havia. Uma técnica muito, mas muito diferente da nossa, tão diferente que chega a ser estranha e de difícil compreensão aos nossos olhos! A razão, o raciocínio envolvido na caça era guiado pelos sentimentos e pressentimentos que o movimento da mata gerava. Acho que este era o elemento fundamental que fazia Rousseau romancear os seus "bons selvagens".
A fé move montanhas, mas o sentimento religioso é quem move a fé. A fé só é cega quando se torna mera repetição, sem finalidade ou algum “pathos” (paixão) que mova nossos gestos. A fé cega é objeto de alienação e de dominação, religiosa, cultural e social. Lutero bem notou isso e lutou contra, traduzindo as Bíblias em alemão para que cada membro da sociedade pudesse ler e ser tocado pelo "pathos" ao qual me refiro. A fé raciocinada é quando não nos limitamos a repetir, mas a buscar sentido e justificação para os nossos sentimentos e crenças! Agora, só raciocinar, sem nenhum “pathos”, nenhuma fé, nenhum sentimento religioso, é agir de forma fria e dada a todos preconceitos que esta herança ocidentalista nos impõe. Até mesmo a interpretação inconteste é alienada e pode ser usada como instrumento de alienação!
O lado bom da História é saber que nem sempre foi assim. Que homens lutaram e brigaram para instituir o que Hoje nos é dado pronto como “verdade”. E melhor ainda é pensar em quantos e tantos guiados pela sua fé, acompanhada pela razão, não foram queimados e subjulgados por inquisidores, por tentarem justificar publicamente suas "verdades". E tantos outros que só puderam compor uma obra por herança. E tantos mais anônimos, esquecidos nas páginas da História, que vivenciaram sua fé e razão a contragosto dos padrões instituídos, os chamados excentricos!
E isso não apenas em religião, mas em ciência também! O Bóson de Higgs, ao qual nos referimos aqui como a “partícula de Deus” é apenas uma hipótese, algo cuja existência não foi provada e os efeitos supostamente identificados. Apesar disto, bilhões e bilhões são movidos para pesquisas acerca desta partícula.... É a fé, a mesma fé despertada por um "pathos", um sentimento ou pressentimento, movendo não apenas montanhas, mas milhões de euros. Este exemplo serve para fazer ver que a “fé” não é privilégio das religiões... que o sentimento ao qual me refiro, nada tem de místico no sentido dos livros de auto-ajuda, mas trata-se de algo real, mais comum do que pensamos.
Basta saber se, quando agimos, quando julgamos, quando justificamos algo, o fazemos por repetição de padrões preditos e fixados em nossas mentes desde a infância (alienação), ou se somos autônomos diante de nossas crenças, convicções e, conseqüentemente, ações. O adepto de umbanda que simplesmente repete, não é autônomo. Mas aquele que compreende intimamente, mesmo que por pressentimento, o sentido e a finalidade do rito, este sim é autônomo em relação à sua fé e à sua prática.
Nos dias atuais nada mais difícil que tornar a razão uníssona com os sentimentos! Às vezes pressentimos algo que contestam nossas concepções, e reagimos com preconceito e fuga. Mas mesmo fugindo e negando, continuamos incomodados e tristes, pois intimamente o sentimento lateja, não some com a fuga, mas persiste insistindo em dizer que é ali o lugar de nosso "pathos", que é ali onde nos encontraremos.
Termino essa postagem citando um trecho do Pequeno Príncipe, que apesar de conhecido como “livro de Miss” (risos!) traz algumas verdades que devem ser guardadas.
"Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade, mas tu não a deves esquecer." (Antoine de Saint-Exupéry)
12 de jul. de 2010
Banho de Manjericão
Espiritismo X Umbanda (parte II)
De forma doutrinária, o espiritismo não exerce e nem pode exercer influência sobre a umbanda, mas, quando muito, auxiliar a compreensão do médiun (ou cavalo, como nossas entidades costumam falar) sobre o processo envolvido nas manifestações dos terreiros, e sobre as formas como nossas entidades podem atuar sobre nós.
Algumas postagens atrás, por exemplo, tratei dos sonhos e sobre como os sonhos nos trazem, algumas vezes, mensagens de nossos guias espirituais. Naquela postagem, mencionei tanto o texto de Kardec, quando explorei o tema no sentido mais primitivo da concepção usando um documentário indígena como exemplo. Mesmo que tenhamos usado a letra de Kardec para explicar o fenômeno, isso não faz com que o fenômeno seja “uma influência” do kardecismo. O próprio espiritismo é claro quanto a sua proposta esclarecedora acerca dos fenômenos da espiritualidade: mediunidade e comunicação com espíritos, sempre existiram desde os tempos mais antigos. A diferença é a forma como se explica o fenômeno. Com o avanço do conhecimento, o estudo do livro dos médiuns, hoje, é o meio mais adequado para explicar tais fenômenos.
A verdade é que com o passar dos anos e o desenvolvimento das culturas ocidentais, o seu voltar para a tecnologia e questões materiais de sobrevivência, coisas que nas culturas mais simples eram encaradas com naturalidade se tornam, aos olhos do homem urbano, trabalhador de uma empresa, que opera cotidianamente com alta tecnologia, elementos simbólicos e mitológicos de culturas já extintas. Difícil, nos tempos atuais, é encontrar alguém que acredite na real influência dos espíritos naturalmente. A crença até existe, mas é sempre colocada como digna de desconfiança no primeiro percalço.
O homem de hoje dificilmente olha para si mesmo e para a comunidade como parte de um todo, coisa que nas culturas ditas “primitivas” era condição para aquele que desejava pertencer à comunidade. Os filhos pertencem aos pais e a sociedade, de modo geral, não se sente responsável pelas crianças nos tempos atuais. Já na sociedade tribal, os filhos pertenciam à família, mas também à comunidade e a comunidade toda era responsável pela integração daquele membro no grupo. A comunidade é como um corpo, do qual cada indivíduo é membro. A ofensa a um membro da sociedade por alguém de fora era vista como uma ofensa a todo grupo social. Hoje em dia somos os primeiros a ignorar, desprezar e ofender àqueles que estão inseridos no mesmo grupo social nosso. Vemos isso cotidianamente, nas ruas, nas escolas, nas empresas, no mesmo prédio e até mesmo no seio familiar. Mas não é objetivo, aqui, culpar a esta “falta de sensibilidade social” pela dificuldade na compreensão de fenômenos simples. Este mal de nossa sociedade é, antes, um efeito da perda de contato do homem com qualquer coisa que não lhe sejam dada aos sentidos.
O homem de hoje respira sem consciência do processo envolvido na respiração, a menos que pegue um resfriado. O homem de hoje não caminha, não suporta o vento e a chuva. Muitos julgam que as árvores fazem sujeira nas cidades e que seus frutos só servem para amassar os carros. Preferem ver a praia de longe, sem ter contato com o sal do mar, e constroem piscinas a beira mar. Gostam da mata, mas preferem-na como descanso de tela de seu computador que sujar seus sapatos com terra e sofrer mordidas de mosquitos. O homem atual, sai de sua casa, entra no seu carro e sai do carro para o prédio onde trabalha e mal consegue olhar para o céu (a menos que queira saber se vai chover). Enfim, possui hábitos completamente distintos daqueles que habitam tribos, ou, nem precisamos tanto, possuem hábitos distintos de nossos avôs e bisavós.
Obesidade, hoje, é um problema e a menos de 100 anos o número de obesos era mais de 50% menor. As pessoas, por razões óbvias, eram menos sedentárias e sabiam aproveitar mais os espaços livres e arborizados das grandes cidades. Olhar o céu era programa o dos apaixonados.
O homem deixou de fazer parte da natureza, da comunidade, de si mesmo. O valor de um homem é o que ele produz e o que consegue possuir com seu trabalho. Há um excesso de pragmatismo e materialismo no mundo atual. E é este o maior desafio enfrentado pelos poucos que ensejam um trabalho mais espiritual. Dizer quem em sonhos visitamos espíritos amigos, ou que algum espírito mal intencionado se aproximará se mantivermos maus pensamentos é a maior demonstração de ignorância e superstição. Por esta razão, grande parte daqueles que buscam e adentram os terreiros de umbanda, o procuram por necessidade. Quando as coisas já estão a tal ponto que, a última alternativa é apelar para o desconhecido “pra ver ser” dá certo.
Neste momento, geralmente confuso para a grande maioria, é que o estudo dos textos de Kardec pode auxiliar. De forma menos “mística” que as pitonisas gregas, ou tupã, ou ainda qualquer dos orixás que louvamos, Kardec mostra ao homem “de razão” como é possível que o invisível aos olhos nos influencie e, mais importante, como podemos cuidar para que essas influências sejam benéficas.
Para o praticante de umbanda, aquele que entra no terreiro com o branco para iniciar o contato com suas entidades, torna-se fundamental a leitura de tais textos. Pois desmistificam o processo vivenciado nas seções, em sonhos, e em outros momentos da vida do “médiun”. É importante para o trabalhador de umbanda de hoje compreender o que ocorre consigo mesmo, já que no cotidiano a realidade se mostrará completamente avessa ao ambiente do terreiro. O terreiro é como um mundo paralelo, onde devemos nos abrir e vivenciar o entorno como o homem antigo vivia, como o homem tribal vivia.
O homem tribal, além da relação que estabelecia com todos os membros de sua comunidade, estabelecia uma relação, também com a natureza que o cercava. Entendia as Matas como um ser vivo, capaz de enviar sinais à comunidade. Lia a mensagem que os ventos traziam pelo tato e olfato. Todos os poros do corpo do homem da tribo estavam conectados (não era preciso cabos como em AVATAR - risos) com a natureza circundante. E assim ele conseguia pressentir os perigos e saber dos benefícios que a mata trazia. É assim que o praticante de umbanda deve vivenciar seu terreiro. Com o mesmo senso de comunidade e natureza que predominavam nos tempos das organizações tribais, sendo a comunidade o corpo mediúnico e a natureza simbolizada por nossas entidades e guias espirituais. Comportamento tão avesso aos dias de hoje!
Kardec abre uma porta, mas não determina a prática. Kardec nos ensina como é possível essa realidade, mas vivenciar esta realidade como nas comunidades tribais será ensinamento de terreiro, dado por nossas entidades chefes que representam a ancestralidade daquele grupo. O espírita sabe, o umbandista sente. Porém como a nossa sensibilidade anda, nos dias atuais, “embotados de cimento e tráfego” (citando Chico Buarque) o primeiro passo do sentir, passa pelo saber. Sabendo ser possível e como é possível fica mais fácil nos abrirmos e permitirmos que nossa sensibilidade perceba estes eventos já tão estranhos à grande parte de nossa sociedade, mas comuns aos nossos antepassados.
Neste sentido, Kardec e os demais autores espiritualistas serviriam de auxiliares, textos para ajudar do médiun umbandista na aceitação e compreensão racional dos eventos vivenciados no terreiro. Assim, fica mais fácil crer em nossas intuições, em nossas incorporações, em nossos sonhos e desdobramentos noturnos... fica racionalmente mais fácil vivenciar a prática tão comum de nossas entidades, por meio das quais a umbanda é ensinada.
10 de jul. de 2010
Umbanda X Espiritismo (parte I)
Quando começamos a pesquisar a respeito da umbanda não é raro encontrarmos a seguinte afirmativa: a umbanda difere do candomblé por ter influências kardecistas, pois, além dos Orixás, se manifestam nesta religiosidade espíritos de mortos, denominados pretos-velhos, caboclos e exus. Uma das razões que podemos identificar para esta afirmativa está na forma como grande parte dos umbandistas propaga a história do surgimento da religião. Afinal, foi em um centro espírita que Zélio de Morais recebeu pela primeira vez o Caboclo das Sete Encruzilhadas e anunciou a fundação de uma “nova” religião.
Para conhecer mais sobre esta história acesse o link:
http://www.guia.heu.nom.br/origem_da_umbanda.htm
O fato é que muito antes deste acontecimento, diversas religiosidades mestiças já praticavam seus cultos com a manifestação de caboclos e pretos-velhos. Temos em várias regiões do Brasil, manifestações religiosas mais antigas que a umbanda, onde tais espíritos tinham seu espaço: catimbó, jurema, cabula, entre outros. Um livro interessante e que apresenta esta polêmica bem é o Umbanda de Pretos Velhos de Etienne Salles.
Mas não é o propósito desta postagem falar das polêmicas que cercam a origem da religião, mas sim, falar dos problemas enfrentados na caracterização da umbanda como possuindo influências kardecistas. Quando falo de problemas, me refiro a questões práticas dada a internalização de certos “princípios” espíritas que os adeptos da umbanda acabam fazendo por compreendê-la tendo como origem o espiritismo, ou por compreender a umbanda como “um braço” que liga o espiritismo à religiosidade afro. Onde a internalização destes princípios aparecem? Simples: se uma entidade usa certos materiais de trabalho comuns às vertentes denominadas “negras”, como o candomblé, por exemplo, é porque esta entidade é um espírito que ainda não evoluiu o suficiente para compreender que tais elementos não são necessários. É muito comum vermos afirmações como esta, denotando certa “evolução” dos espíritos atuantes na umbanda, a partir da restrição do uso de certos materiais de trabalho, como, por exemplo, a bebida e o fumo.
Verdade seja dita, se formos ouvir os grandes “médiuns” da doutrina Espírita, veremos que há uma grande resistência à umbanda. Seja pelos arquétipos representados por nossas entidades, seja pela maneira de prestarem assistência aos que a procuram, seja pelos elementos materiais utilizados. Portanto, há que se ter certas restrições ao se falar das “influências espíritas” na umbanda.
Para ilustrar o que digo, seguem dois vídeos como exemplo: O primeiro do Divaldo Franco, médiun muito respeitado no espiritismo, dispensa comentários. Pois é claro e notório onde o preconceito relativo a umbanda aparece:
O segundo vídeo, extraído do programa pinga fogo onde Chico Xavier foi entrevistado em 1979. Pinga Fogo. Sei o quanto é complicado falar da figura de Chico Xavier, ainda mais em uma postagem como esta. Mas a diferença entre Chico e Divaldo é a inteligência e a capacidade retórica apresentada no vídeo. Deve-se prestar muita atenção, pois apesar de Chico iniciar a resposta sobre umbanda afirmando o respeito que tem pela religião, podemos identificar equívocos. Neste caso o preconceito ao qual me refiro é velado, cabendo algumas explicações prévias para que possam ser identificados os problemas do discurso de Chico. O primeiro ponto que deve ser destacado é a descrição da função e do papel das entidades de umbanda, como os pretos velhos, que remetem à encarnação anterior destes espíritos. Como os Negros velhos eram escravos e serviam, eles formam um seguimento religioso onde continuam “servindo” ao atender os apelos de cura. Em seguida isso é tido como errado, pois aos olhos do espiritismo as doenças e limitações físicas são provações pelas quais temos que passar. É só conferir o vídeo:
Esta concepção de que nossas entidades estariam “presas” e “vinculadas” à suas últimas encarnações é designada como ATAVISMO. Atavismo significa, basicamente, o reaparecimento de características passadas – vem do latim Atavus que significa ancestral. Há um equívoco grande nas palavras de Chico que mostram a completa ignorância acerca da religião, fruto de alguns preconceitos enfrentados pelos umbandistas: as entidades estão presentes para nos orientar, limpar nosso campo energético quando necessário, realizar desobsessões quando preciso, mas nunca para servir a nossos caprichos! Curas e problemas de saúde podem até encontrar alguma solução, desde que seja do merecimento da pessoa. Caso o problema seja prova, dificilmente uma entidade conseguirá curar ou resolver a questão.
O que pretendo destacar aqui é que esta concepção é equivocada. Caboclos e Pretos-velhos assim se apresentam no terreiro por escolha. Seus “atavismos” se farão notar pelos trabalhos que realizam e não pela forma como se apresentam. Há quem diga que a imagem de pretos-velhos e caboclos são arquetípicos, ou seja, símbolos que representam algo presente na memória da coletividade. Preto-velho, neste caso seria o arquétipo do velho sábio, com experiência de vida, de ancestral que orienta os mais novos e guarda segredos. Àquele a quem, a contragosto dos senhores de engenho, todos os negros veneravam e aceitavam como líder, orientador e protetor da comunidade negra residente nas senzalas.
A real significação sobre as características que nossas entidades apresentam na umbanda é muito discutida e está longe de ser esgotada. Tampouco é nosso objetivo, agora, expor mais detalhadamente os debates que rondam por aí sobre isso. O que vale é destacar aqui a imagem que comumente o espiritismo guarda da nossa umbanda e de nossas entidades, de forma geral. Sei que isso vem mudando com o tempo, mas não é raro o umbandista se declarar “espírita” e acabar esbarrando nestes preconceitos. Por esta razão é, no mínimo, complicado colocar a umbanda como possuindo “influências” kardecistas, no sentido de ser uma prática religiosa derivada do espiritismo. Assim como é complicado afirmar categoricamente ser a umbanda derivada do candomblé.
Para finalizar esta postagem, coloco dois vídeos feitos pela escola de umbanda sagrada sobre o tema. Apesar de não fazer parte desta escola umbandista, acho importante destacar quando aparecem temas interessantes e esclarecedores para todos os que iniciam na religião, ou mesmo para aqueles que buscam compreender melhor a nossa religiosidade. Pessoalmente, tenho certas divergências com a Escola de Umbanda Sagrada, mas este vídeo, em particular, considero bom, esclarecedor e digno de divulgação:
PARTE I:
PARTE II: