27 de ago. de 2016

Seria Sócrates um médium? (Ou ainda: seria o espiritismo cristão em sentido próprio?)

Essa postagem é um pouco inspirada no artigo "Eram os gregos macumbeiros?". Porém em uma vertente diferente. 

Ultimamente tenho me voltado bastante para filosofia grega e dentre tantos preparos para aula, pensei: porque não aproveitar o ensejo para pesquisar algo que me interesse? E assim comecei um estudo que já tem alguns anos eu desejava fazer. Tentar entender um pouco melhor o conceito de DAEMON no pensamento socrático, tal qual reproduzido por Platão (e Xenofantes, também, muito embora não tenha me aprofundado nesse segundo autor).

No meio dos meus estudos lembrei que no Evangelho Segundo o Espiritismo há um tópico, logo na introdução, só sobre como Sócrates teria sido um "precursor" das ideias cristãs - acho (meio hereticamente) que não é bem assim, e espero poder falar disso mais a frente. Mas importa, nesse primeiro momento que o Espiritismo considera Sócrates como um dos primeiros pensadores a falar sobre reencarnação e sobre espíritos que nos acompanham, DAEMONES, que seriam, na visão kardecistas como mentores espirituais.

Os artigos que encontrei sobre o tema mostram que parte da condenação de Sócrates envolve não apenas o fato dele ser considerado um "aliciador de jovens", no sentido de disseminar entre eles a reflexão, o questionamento sobre temas básicos como "a justiça", "o bem", etc. Está presente também na condenação de Sócrates a acusação de subverter as crenças estabelecidas, o que alguns interpretam em como não crer nos deuses e de substituí-los por outros seres (que seriam os daemones). Para compreender melhor isso é necessário entender: (1) se tais entidades já estavam presentes na religiosidade grega; (2) a forma como Sócrates pessoalmente se relacionava com seu daemon. Ao falarmos dessa segunda parte é que a questão do título desse post se coloca.

Sobre o tópico (1) podemos explicar em linhas gerais que desde Hesíodo (bem antes de Sócrates) os daemones já faziam parte da religiosidade grega. Eles eram subordinados à um Theos, um Deus. E eram responsáveis por acompanhar os homens (um para cada homem) para garantir que seu destino se cumprisse, mas sem interferir nisso. Ou seja, não havia nenhum tipo de comunicação entre um homem e seu daemon pessoal, nem para o bem, nem para o mal. No final da vida (e isso o kardecismo fala certo) é o daemon o responsável por conduzir a alma "do seu humano" pelo Hades.

A grande diferença que podemos encontrar entre os daemones clássicos e os que são referidos por Sócrates, é que, diferente do que diria a religiosidade, Sócrates conseguia "ouvir" conselhos de seu daemon. O daemon, não agia, deixava as escolhas por conta de Sócrates, mas o aconselhava de vez em quando. E é essa relação com o seu daemon pessoal que gerou a grande confusão. Como, de acordo com Hesíodo, os daemons apenas selam para que os destinos sejam cumpridos sem nunca interferir (nem comunicar nada), era uma afronta Sócrates estabelecer uma relação de camaradagem com seu daemon pessoal. Na cabeça dos gregos, Sócrates estava substituindo a crença nos deuses pela crença em seu daemon, como se ele fosse a divindade. 

Alguns interpretes consideram que a acusação de Sócrates era equivoca, e que não se trata de uma "substituição de divindades", mas sim da ressignificação dos daemones, já que antes de Sócrates essa comunicação não ocorria (não que a gente saiba...rs) O próprio Sócrates, em sua defesa, argumentou que Daemones são mensageiros dos Deuses, cada um subordinado a um Deus, crer nos daemones, implica necessariamente crer nos deuses que os criaram e os colocaram para guardar os homens. A diferença é que Sócrates recebia e acolhia os conselhos dados por seu daemon (que pelo que li era enviado por Apolo). Enfim, o problema todo estava, na verdade, no fato de Sócrates se comunicar com esses ser "dividos" e tê-lo como conselheiro. E por isso veio a questão: Seria Sócrates um Médiun?

Segundo o Evangelho Segundo o Espiritismo, sim. O contato de Sócrates com o daemon representa o que hoje se vê nos contatos mediúnicos com mentores espirituais. 

Mas esse é um blog sobre umbanda, certo? Por que abordar esse tema aqui? 
Cabe lembrar que proponho não um mero acordo com o Espiritismo (lá no começo do texto) mas uma leitura de certo modo herética do texto de Kardec. 

Quando Kardec menciona Sócrates, o faz no sentido dele ser um precursor de idéias cristãs que estão presentes no espiritismo. Mas será que é isso mesmo? Vejamos: no espiritismo os mentores espirituais não são enviados por Deuses e nem subordinado à deuses. Já na umbanda podemos encontrar algo bem mais parecido com o que os gregos falavam sobre esses seres, uma vez que todos os espíritos trabalhadores de umbanda são agrupados em falanges que respondem a um Orixá (seja esse Orixá interpretado uma deidade ou como força da natureza). Talvez isso ocorra justamente por ter uma "raiz" pagã em ambos os casos: O panteão grego não era cristão, assim como o panteão dos Orixás não era cristão em sua origem.

Ao que diz respeito aos daemones, creio que eles sejam mais próximos dos guias espirituais de umbanda, que dos mentores espíritas, pelo fato deles serem ordenados, organizados, conforme os deuses do olimpo. 

Mas o Evangelho afirma que Sócrates é um precursor das ideias do cristianismo. Afirma, também, que nada do que ele traz é absolutamente novo na história da humanidade. A própria proposta do Evangelho de Kardec é apresentar uma releitura de passagens do novo testamento à luz da doutrina espírita, mostrando que a doutrina não é contraditória com o texto sacro. Mas se é assim, porque ainda vemos tamanha resistência dos católicos em aceitarem a doutrina espírita? Seria puro preconceito? Será que Sócrates, os daemones, a reencarnação são compatíveis com os dizeres de Jesus, de acordo com o cristianismo apostólico romano que conhecemos? Não. E nem dá para afirmar que historicamente em algum momento o cristianismo tenha aceito teorias similares ao que prega o Espiritismo. É uma afirmação forte, sim. Mas uma afirmação baseada nas cruzadas que catequizavam pelo sangue, bem como nas perseguições e condenações das Heresias.

Historicamente o sec. XIII foi decisivo em relação à consolidação de determinadas doutrinas católicas. Dois eventos marcaram parte um momento de "depuração" da doutrina para transformá-la no que conhecemos hoje.

O primeiro foi o Concílio de Latrão de 1215. Nesse concílio, a igreja condenou o "Catarismo", uma vertente que surgia na França e que possuía bases muito similares às que vemos hoje no espiritismo. Não é possível rastrear totalmente sua origem já que os Cátaros foram praticamente dizimados e grande parte da sua doutrina se perdeu (e essa era a ideia mesmo, fazer sumir do mapa). Nas pesquisas que fiz, já encontrei tanto a descrição do Catarismo como uma "manifestação espontânea" gerada por uma leitura autônoma do novo testamento, como uma vertente mística do cristianismo que negava a sua hierarquia interna, os cargos, etc. (e nesse caso a condenação da doutrina ganha cunho político), como já li que o Catarismo tem origem nas doutrinas bizantinas, vindas de Alexandria, que questionavam dogmas como a transubstanciação da trindade em um só Deus, além de considerar a ressurreição de forma bem próxima à reencarnação dos orientais.

Outro momento foi em 1277, onde um decreto (décret de l'évêque) condenou todas as doutrinas de origem averroísta, que, dentre várias coisas pertinentes ao universo ser infinito, resgate da física ptolomaica, etc., diziam ser a alma humana uma parte de Deus e que, ao final da vida, a alma humana se reintegraria com Deus. Doutrina que muito ajudou na construção da "nova ciência" (sec. XV-XVII) e inspirou filósofos posteriores como Giordano Brunno e Espinosa.

Enfim, o cristianismo, tal qual conhecemos, nunca reconheceu como parte sua essas doutrinas que, de certo modo, encontramos, também, no espiritismo. Logo, não seria por essas teses (reencarnação, resgate cármico, etc.) que o espiritismo deveria se reconhecer como cristão. Nem tampouco Sócrates poderia ser visto como precursor de ideias cristãs, a meu ver. E por isso chamo essa minha leitura de "leitura herética do espiritismo", pois sei que muitos espíritas dogmáticos me colocariam na fogueira por isso...rs.

O que há de comunhão real entre o cristianismo e o espiritismo é o resgate do termo "ágape" como "caritas", ou seja, o amor mais divino segundo o testamento (o amor ao próximo) como caridade. Mas talvez esse venha ser tema de outra postagem, ou não...rs

Para a ideia original da postagem, já me estendi até demais! 



21 de ago. de 2016

Como ler um livro?

Esse post é uma crítica à forma como buscamos os livros. Qualquer livro...mas principalmente àqueles que abordam temas religiosos de umbanda e/ou espiritismo.

É comum nos dias de hoje que qualquer iniciante na religião de umbanda busque na internet, em blogs ou em livros respostas para dúvidas que muitas das vezes o dirigente por si só não sabe responder. Mas o que buscamos nos livros? Verdades? Por que vemos nos livros um local privilegiado onde uma "verdade" é revelada para nós? De onde vem isso? Essa relação com a palavra escrita, como se a escrita fosse uma autoridade?

De outro modo, porque grande parte das pessoas vêem como se a falta de um léxico, um corpo teórico escrito, enfraquecesse a religiosidade? Mas já falei um pouco disso aqui.

Um neófito de umbanda, perdido, fatalmente buscará em fontes escritas (virtuais ou em livros) meios de se orientar. E muitas vezes ao encontrar algo que se afine com aquilo que ele "pressente", mas não sabe ao certo se é fato ou não, logo toma como verdade. Outros tomam como verdades teorias rebuscadas, que se coadunem com sua cultura. Ainda há aqueles que levarão em conta a "autoridade" da fala: um texto espírita secular, textos escritos e endossados por vários sacerdotes e dirigentes, ou ainda a autoridade de uma mística reconhecidamente milenar, como se grandes segredos estivessem sendo ali revelados. Assim nascem os diversos tipos de leituras sobre a umbanda: os que tem por base a doutrina espírita, os que tem por base as instituições umbandistas, os que tem por base uma "mística" que tem sua origem em qualquer lugar, menos nos Orixás e Caboclos e Pretos Velhos, que são apenas desdobramentos brasileiros de forças universais. Não que eu descreia das místicas, acho mesmo que em muitos pontos elas se tocam (como boa leitora de Mircea Eliade e Joseph Campbell, rs). Mas elas se tocam, não necessariamente se misturam formando um amálgama de culturas babilônicas, egípcias, pagãs, europeias e brasileiras. Explicando matematicamente: vários conjuntos podem tem um ou dois elementos comuns, mas isso não os tornam conjuntos iguais.

Nessa busca, muitas vezes o neófito acaba encontrando suas "verdades" em textos cuja concepção de umbanda diferem muito daquela do terreiro onde se encontra e, mais cedo ou mais tarde, essa diferença resultará na necessidade de uma escolha: "ou o terreiro que estou está certo e o livro errado (e com isso minhas dúvidas retornam) ou o livro está certo e o terreiro que estou está errado." Porém, não precisa ser assim. Isso acaba ocorrendo devido a relação que estabelecemos com o texto escrito. 

Nossa cultura está pautada na sacralização do texto escrito.

Vou explicar: desde cedo aprendemos que nos livros encontramos o que é certo. Na escola a professora ensina a buscar a resposta certa no livro, ou seja o livro traz uma verdade que nos fará tirar uma nota boa na prova (como professora, tenho restrições a essa metodologia, mas ela é comum em grande parte das instituições de ensino). Se a família é católica, aprende-se que na Bíblia está a verdade revelada por Deus aos apóstolos. Se queremos saber o que ocorre no mundo, procuramos os jornais que nos "revelarão" os principais acontecimentos. Em resumo, somos educados a procurar "a verdade" nos mais diferentes tipos de textos escritos.

Essa forma de educação obscurece em grande parte uma outra função do texto escrito: o de simplesmente tornar público um pensamento. Assim acontece com os livros de poesias, literatura, e pesquisas acadêmicas em geral (muito embora alguns vejam os textos acadêmicos com a mesma sacralidade apontada anteriormente). Esquecemos muitas vezes que uma mesma notícia, por exemplo, será publicada com diferentes interpretações, dependendo do jornal que buscamos. O mesmo acontece com os livros de história, porque um fato histórico pode ser contado de diferentes maneiras. A dificuldade aparece na hora que lidamos com textos de cunho religioso: espíritas e umbandistas. Porque compreendemos sempre, devido a nossa cultura, que livros religiosos nos trazem "verdades". Assim o neófito ao buscar o texto de umbanda, verá nele o lugar de uma verdade sacralizada e aí vem a confusão. Livros de umbanda, assim como os demais textos, são escritos sob perspectivas. O que vale para um autor, não vale para outro. Alguns descrevem a concepção de umbanda predominante no ritual de umbanda de sua casa, outros pretendem universalizar e fornecer um corpo doutrinário que seja comum a várias casas. São inúmeras as intensões das publicações que podemos encontrar sobre a umbanda, uma delas também abordamos aqui. E é justamente a multiplicidade das intensões, bem como a multiplicidade das práticas umbandistas, que devemos considerar sempre ao ler um texto sobre umbanda. Ideal é ter em mente que ele nos traz UMA verdade, e não A verdade. Essa verdade pode se adequar mais ou menos com a forma da casa que frequentamos, ou com a forma como sentimos a religião por meio dos ensinamentos dos guias espirituais. Devemos sempre lembrar, também, que parte dos ensinamentos de umbanda ocorrem oralmente e, por isso, nenhum livro ou texto dará conta de forma completa do que é a umbanda.

Um filme que didaticamente mostra com humor o valor que a nossa cultura dá ao texto escrito, bem como pontua as diferentes perspectivas da narração de uma história e a dificuldade do historiador ao escolher uma delas, é Narradores de Javé, filme brasileiro de 2003, dirigido por Eliane Caffé. Termino essa postagem com link para o filme: