8 de fev. de 2015

Intolerância Religiosa - Parte I - Entre o Silêncio e o Medo

Essa semana um fato pegou de surpresa a todos que pertencem ao centro onde trabalho há três anos. Uma das filiais da casa teve a porta arrombada e quebraram imagens de pretos-velhos e exus da entrada. Tudo indica que o invasor iria quebrar o congá e as demais imagens do interior da casa, quando desistiu da ideia, largou um pedaço de pau no meio do terreiro e saiu. Não houve furto de dinheiro e nem da comida que existia lá dentro, fazendo com que os policiais concluíssem que não se tratava de um assalto, mas de um ato pontual, cuja finalidade era atacar os símbolos do terreiro: imagens de exus, pretos-velhos e orixás.

http://extra.globo.com/casos-de-policia/centro-de-umbanda-no-cachambi-alvo-de-depredacao-ato-de-maldade-diz-dirigente-15239467.html



O caso foi identificado como intolerância religiosa e ganhou os jornais, TVs e redes sociais, com uma força impressionante! A Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, membros de diferentes religiões, foram à filial atacada prestar solidariedade. O vereador Átila Nunes organizou junto à casa um ato de desagravo que ocorreu neste último sábado, 07/02 na rua em que se localiza a Filial. 

Seguindo o que a minha consciência mandava como umbandista e filha da casa que sofreu a agressão, compareci ao ato e me surpreendi com o fato de poucas pessoas terem comparecido. Minha expectativa era que houvesse um número maior de pessoas, pelo menos, um número maior de médiuns da casa presentes. Saí de lá refletindo sobre a razão disso. A indignação pelas redes sociais foi enorme, mas, na hora de comparecer a um ato público, poucos foram... Perceber essa desunião me colocou uma pulga atrás da orelha. Qual seria a verdadeira causa disso? E é a reflexão sobre a causa dessas ausências que pretendo expor aqui. Essa reflexão leva, automaticamente a uma explicação do porquê, mesmo sendo sabido que a invasão de propriedade é crime, pessoas que não são em sua raiz "criminosas" acabam vendo nos terreiros um caso onde essa invasão é permitida, e até mesmo aceita como correta! A questão é religiosa? Sim! Mas não é apenas isso, trata-se, também, de uma questão cultural construída ao longo da história.

Existe, entre os umbandistas, uma cultura do silêncio. 

Quem entre nós nunca ouviu frases como "centro bom, é centro longe!" ou ainda "debaixo da batina tem dendê". Essa última frase, aliás, aprendi com a minha mãe, que frequentava a umbanda como assistente, quando eu era criança, e ia ao Mosteiro de São Bento na missa da páscoa. Ensinava que não era bom dizer que ia na umbanda, pois as pessoas reagiriam mal a isso. Sim, era exatamente isso que eu ouvia. Cresci entre o banquinho do preto velho e as missas de domingo! Essa cultura de que a umbanda não pode ser dita é que alimenta a ideia de que invadir um terreiro e quebrar suas imagens pode não ser um crime, mas algo que pode ser feito.

Durante anos da história do Brasil, em vários estados, incluindo Rio de janeiro, as religiões afro foram perseguidas e coibidas. Ser de uma religião afro implicava lidar com "forças ocultas do mal". Muitos eram acusados de bruxaria e contravenções. Já publiquei aqui nesse blog o caso carioca do Juca Rosa, no período do Império pré-abolição, que fora condenado por estelionato, já que na época ainda não havia leis que impedissem as praticas religiosas dos negros. Após a abolição da escravatura, leis que proibiam as práticas de candomblé e da capoeira foram aprovadas. 

No caso de Juca Rosa, fica claro que o temor relativo à pratica religiosa era o de um "poder" concedido pela prática de "ocultismo" para a resolução dos casos que chegavam até ele. Casos que não eram restritos às classes menos favorecidas, alguns nobres o procuravam, também, às escondidas. Esse poder não era, certamente, um poder político ou financeiro, mas algo de "sobrenatural" que as pessoas temiam. Um negro com poder? Algo inconcebível em uma época onde era quase consensual ser o negro inferior ao branco. Este é um debate que vale à pena ser desenvolvido, mas que deixarei para outra ocasião. O que importa é que esse "poder" não podia existir. A melhor maneira de reprimi-lo era reprimir as práticas que dessem algum "poder" a esses negros. 

O mesmo tipo de perseguição ocorreu na época da fundação da umbanda. Atabaques, se fossem ouvidos, eram apreendidos e as casas fechadas. Grande parte das casas antigas têm nomes sem relação direta com umbanda ou práticas religiosas negras: Tenda Espírita N. Sra. da Piedade, Tenda Espírita Mirim, Centro Espírita Caridade de Jesus, são exemplos de centros de umbanda que surgiram nas três primeiras décadas do Século XX e que não traziam em seu nome referência à umbanda. Alguns centros, tinham suas sessões públicas na cidade, sem atabaques, mas as sessões de terreiro, com cânticos aos orixás e atabaques, aconteciam longe dos grandes centros, para que não houvesse problema com a polícia (daí a expressão que centro bom é centro longe!) São várias as histórias que narram casos de prisões de dirigentes de centros de umbanda no começo do século XX.

O umbandista, desde o seu início, sempre se escondeu. Com exceção daqueles que tinham missão de levar a religião adiante. Nunca foi cobrado do umbandista um comprometimento maior com a sua religião, tal qual acontece com outras religiões. E isso ocorre por ser a essência da umbanda prestar a caridade sem cobrar nada em troca. Assume a umbanda quem quer, assume quem escolhe fazê-lo e, infelizmente, nem todos o fazem. Aliás, o certo, até como uma espécie de proteção contra o preconceito, era esconder a umbanda. Outra razão pela qual o centro bom era aquele longe, mais fácil de manter o umbandista escondido.

Enquanto essa era a postura da umbanda, a ideia de que as religiões que cultuam orixás são "malignas" vai se criando mais forte no inconsciente popular. Tem gente que nunca soube nem a razão pela qual teme a umbanda, a "macumba", mas teme. Alguns, são indiferentes. E é isso que faz com que um terreiro de umbanda depredado não gere uma comoção tão forte a ponto de mobilizar, no mundo real, fora das redes sociais, as pessoas. Se por um lado as redes sociais servem para propagar fatos de forma viral, serve, também como máscara, como um escudo que esconde a covardia das pessoas diante do mundo!

A cultura do silêncio é, e sempre foi, ligada a cultura do medo. Medo de ser rejeitado, agredido, perseguido pelas suas crenças. Se historicamente as religiões negras foram massacradas, historicamente também foi construída uma aceitação tácita desse massacre como algo natural. E é essa aceitação que faz com que alguém considere menor que um crime comum, a invasão de um terreiro de umbanda e a depredação de suas imagens. E, infelizmente, essa ainda é uma realidade.

Sobre o caso do TCP, Templo a Caminho da Paz, espero que toda a movimentação pública, política, midiática, sirva para, pelo menos, pressionar as autoridades para a solução do caso e a punição dos culpados. Enquanto tais ataques permanecerem nas manchetes, sem que seja noticiada a punição de seus autores, permanecerá no imaginário doente de algumas pessoas que a invasão a esses locais é algo diferente de um crime!

Nota do Jornal "O Dia" 08/02/2015





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