Quem nunca ouviu a frase "política e religião não se misturam"?
Quem pensa isso se engana! Toda a história de repressão às religiões de matriz africana passa, também, pelas relações de poder entre dominador e dominado, entre o senhor e o escravo.
Na postagem anterior mencionei o caso carioca do Juca Rosa. Sobre a figura dele pairava um ar de mistério e de poder, poder concedido por conhecimentos mágicos de "feitiços". Uma das causas da prisão de Juca Rosa, muito embora não pudesse constar nos autos, era essa relação de temor e poder que o colocava como subjugador de seus seguidores.
Além do caso de Juca Rosa, temos na literatura a descrição do Pai Raiol, feiticeiro, no romance "As Vítimas Algozes" de Joaquim Manoel de Macedo, escrito em 1869, antes da abolição da escravatura. O ponto de partida do autor é a escravidão como algo que corrompe a essência do negro. O negro se torna mau, cruel, como uma consequência dos maus-tratos da escravidão e, por isso indigno da confiança de seu senhor. O negro escravo, por causa da sua condição, sempre será aquele que conspira contra o seu senhor. Não é diferente no caso do Pai Raiol. Pai Raiol é um negro que conhece rezas e segredos das ervas e que com isso dominava outros negros e era temido por eles. Descrito como um "bruxo", capaz de matar só com um olhar qualquer um que atrapalhasse seus planos, Pai Raiol se envolve em uma trama cujo objetivo é tomar a fazenda do seu proprietário. Em resumo, Joaquim Manoel de Macedo, descreve o negro bruxo como capaz de tomar o poder de seu senhor. Na trama, Pai Raiol não consegue seus objetivos, mas não porque seu poder fosse falho, mas porque é assassinado por um outro escravo. Mas, antes desse assassinato consegue destruir a família do seu senhor, retirar-lhe a dignidade fazendo-o se envolver e ter filhos com uma escrava e dando-lhe ervas venenosas que o colocaram fraco e doente. Enfim, Pai Raiol teria conseguido seu objetivo se não o tivessem assassinado.
Na história temos a Revolta dos Malês, que completa 180 anos este ano. Negros, principalmente muçulmanos, mas também alguns nagôs, se reuniram em um levante que pretendia instaurar um governo malê em Salvador. Um dos fatores que possibilitou a realização desse levante, foi o fato de serem os malês, negros instruídos. Sabiam ler e escrever em árabe, o que evitou que o movimento fosse descoberto antes do tempo. Em reportagem recente do Jornal O Globo, "Revolta dos Malês, 180 anos" é dito:
De acordo com historiadores sobre o tema (não gosto dessa expressão, porque sempre quero saber quais historiadores disseram) a Revolta dos Malês foi fortemente reprimida. Das seis centenas de revoltosos, 73 foram mortos em enfrentamento, além de dez oponentes ao levante. Os derrotados foram condenados a penas de açoite, prisão, banimento e até morte. A partir dali, a população africana passou a ser submetida a uma vigilância e repressão abusivas.
Dizem, também, que os Malês eram "bruxos", os ditos kimbandas, como também já publiquei aqui no blog. Pairavam sobre eles, segundo João do Rio, o mesmo ar de mistério que cercavam figuras como Juca Rosa e o personagem Pai Raiol.
Esses exemplos mostram como a relação entre a proibição da prática de rituais africanos e, consequentemente, os rituais que mantém essa matriz africana no Brasil, está intimamente ligada com a relação de poder entre o negro e o branco. Retirar do negro a sua prática religiosa, colonizá-lo, era também uma forma de impedir que o negro, seja por atuação em rebeliões, seja por magia, pudesse tomar o poder dos brancos. Se buscarmos na história do Brasil, vemos que muitas das organizações religiosas negras tiveram, também, como função, organizar os negros na luta pela liberdade e autonomia, como por exemplo, a irmandade da Boa Morte.
Enfim, as organizações religiosas negras e a perseguição a elas sempre esteve ligada à relações de poder e, consequentemente, a políticas que visavam coibir o negro escravo e manter o poderio branco. Então, por qual razão hoje afirmamos, com tanta veemência, que política e religião não se misturam? Por que questionamos tanto políticos que levantem a bandeira das religiões afros? E por que não questionamos quando algum político se elege sob a bandeira cristã? Por que, mesmo tendo partidos como o PSC (Partido Social Cristão) elegendo candidatos, insistimos na ingênua ideia de que vivemos em um país laico? Por qual razão casos de agressões à terreiros são tratados de forma diferenciadas pela polícia e pelo poder público em geral?
A resposta à essas questões envolve, novamente, a cultura que já ficou enraizada no inconsciente de grande parte das pessoas: catolicismo, cristianismo são normais, enquanto que as religiões de matriz afro são "negras", são mágicas e envolvem poderes desconhecidos os quais devem ser temidos! O que não é posto de forma consciente, e que subjaz essa ideia, é o fato dela expressar uma relação de poder, consequentemente, uma relação política.
Essa diferença entre as religiões afro e brancas, exprimem antigas diferenças entre senhores e escravos, que eram relações políticas. A diferença entre as religiosidades expressa, ainda hoje, as diferentes relações de poder da época da escravidão no Brasil. Sim, ainda hoje! Ainda hoje vemos praticantes da umbanda viverem como viviam as mulheres da Irmandade da Boa Morte na Bahia: na frente a igreja, atrás, nos fundos, o candomblé, a matriz africana! Essa diferença entre dominador e dominado ainda é uma realidade, infelizmente, nos dias de hoje. Espero que um dia eu veja isso mudar!
Ainda sobre as relações entre religião e poder, posto abaixo dois documentários interessantes que podem ajudar na reflexão sobre o tema:
Irmandade da Boa Morte:
Parte 1:
Parte 2:
Parte 3: