Fazendo um revisão do Blog e de todas as coisas que li e assisti desde então, me espantei com o fato de não ter ainda colocado aqui nenhum parecer sobre o documentário Devoção de 2008, dirigido por Sérgio Sanz. Me espanta porque já vi esse documentário várias vezes, o que significa que ele está na lista dos bons documentários sobre sincretismo e religiões afro-brasileiras.
Lembro que ao assistí-lo pela primeira vez me chamou a atenção, em especial, a escolha de Santo Antônio para exemplificar a forma como o sincretismo se construiu e se constrói na religiosidade brasileira desde os tempos coloniais. Não preciso explicar aqui as razões pelas quais Santo Antônio é querido por mim, já expliquei isso alguns anos atrás nessa postagem aqui.
Considero um bom documentário para quem busca entender as origens do sincretismo. Segue o Vídeo:
Há também esse endereço com o filme em melhor resolução:
https://www.youtube.com/watch?v=GzNA9JP45G8
Para quem deseja ler um pouco mais sobre o papel de Santo Antônio no Brasil colonial, bem como se inserir um pouco mais no imaginário "místico" da época, recomendo a leitura complementar do artigo: Santo Antônio na América Portuguesa: Religiosidade e Política.
26 de jan. de 2016
25 de jan. de 2016
Umbanda -João de Freitas
Ganhei esse livro de presente do meu marido, que apesar de não ser da religião, muito tem me apoiado todos esses anos, principalmente em minhas pesquisas. De início não o levei muito a sério, pois nunca tinha ouvido falar. Me impressionou logo o estilo rebuscado e antiquado da escrita, eu classificaria mesmo como brega, mas alguns pontos me chamaram a atenção e me estimularam a continuar a leitura:

O segundo fato é a data do livro. Ele foi escrito na década de 40, antes de estourar a segunda guerra mundial. Isso por si só já torna a narrativa (brega) digna de leitura, pois os episódios ali narrados retratam uma umbanda que provavelmente não vemos mais nos dias atuais. E eu estava certa! Eu que adoro curiosidades, me espantei ao saber que o ataque a Pearl Harbor e que marcaria a entrada dos EUA na segunda guerra foi anunciado no Brasil no dia de N. Sra, da Conceição, sincretizada com Oxum. Esse dado rendeu uma narrativa curiosamente paradoxal, já que Oxum é conhecida pela amorosidade. rs
Outro dado interessante é uma extensa relação de letras de pontos de umbanda que praticamente não se escutam mais em terreiros (pelo menos eu não ouvi nos terreiros que já passei e foram só três). Algumas vezes desejei que o livro viesse com uma fita K7, que é a coisa mais antiga que posso pensar conter uma gravação caseira, dos pontos ali escritos. Alguns detalhes rituais sobre como se confirmavam pontos riscados, etc. também me chamaram a atenção.
Segui a leitura, muitas vezes lutando para a falta de empatia em relação ao estilo não fosse um impeditivo. Venci a batalha e valeu a pena. O livro tem um valor muito mais histórico que doutrinário e, para pessoas que como eu gostariam de possuir uma máquina do tempo (risos!) Vale muito à pena a leitura.
Na maior parte das narrativas históricas sobre a religião encontramos como pontos centrais de um lado o conflito político entre umbandistas e polícia, do outro lado o conflito entre umbanda e o candomblé que na época era legitimado por meio de diversos estudos antropológicos. João de Freitas faz algo diferente: partindo da aceitação da umbanda como uma expressão brasileira do próprio espiritismo, ele parte em busca de diferentes terreiros, tal qual repórter investigativo, a fim de narrar tudo o que vê. É um texto de valorização da religião, o que pode ser considerado inovador para a data em que foi escrito. O único momento em que algum conflito é mencionado é na ocasião da visita de Joãozinho da Gomeia que seria preso 48 horas depois de ter sido recebido pomposamente em um terreiro de nome Cobra Coral.
Há também longas citações a trabalhos da época sobre a religião que são citados, livros e textos pouco conhecidos no universo umbandista atual. Um deles detaco aqui:
Antes de iniciar os trabalhos, um cambono e uma samba especial acompanhavam, contritos, a Babá que cruzava o terreiro que fora instalado justamente embaixo daquela frondosa mangueira. O silêncio era absoluto. A concentração era de tal forma que nem o coaxar das rãs produzia eco. E um magnífico defumador, transformando como por encanto os nossos pobres espíritos, saturados das lutas cotidianas, passava sôbre as nossas cabeças.
"O perfume é a quintessência de todas as manifestações de Vida"!
E é Waldemar Bento, o crente sincero e autor de "A Magia do Brasil" que, à página 114, discorre sôbre a magia do perfume:
"Aspirar determinado perfume é aspirar em essência a própria Vida de uma flor. Mediante a Sublime Lei do Sacrifício sempre hão de existir flôres na natureza prontas ao Sacrifício das distilações para dar ao homem o ensejo de se avizinhar do Criador.
A escala musical dos perfumes tem início no Infinito, para terminar em Deus!
Defumar um ambiente é o mesmo que prepará-lo para o descenso das divindades.
A palavra dos Manes Sagrados é luz, inscrita em pautas aromáticas.
O Perfume!
Sòmente um poeta, um escritor, um místico poderão compreender a harmonia do perfume. Os perfumes constituem, no éter, escalas musicais bem definidas. Nessa escala, em ondas harmoniosas, num vai e vem incessante, o verdadeiro místico aspira e sente as melodias perfumadas que nos circundam.
O olfato físico apurado percebe-as, o psico desenvolvido sente-as visto que as espirais perfumadas do incenso elevam as nossas almas a Deus!
Existe o perfume da mulher que nos pertence, o perfume dos entes que nos são caros, o perfume da saudade, o perfume da prece, o perfume do ódio, o perfume do amor...
E cada perfume possui a sua tonalidade própria, sua música, sua magia...
Vivemos entre ondas sonoras, perfumadas e coloridas!
E a maior parte dos homens não pressente tudo isso!"
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Não fora talvez por isso a razão daquela defumação porque passamos em conjunto.
Na hora de defumar é necessário absoluta concentração e alheiamento às coisas materiais.
E agora a Iaorixá após saudar dentro do mais puro ritual todas as divindades entrega o terreiro ao ogam para que êste o mantenha sob a proteção do enviado de Xangô.
Essa longa e lírica explanação sobre os defumadores me chamou a atenção por ter me lembrado, remotamente, a relação feita por Newton entre as cores e as notas musicais. Relação que até hoje em alguns locais (Ramatis, por exemplo) se usa em tratamentos de cromoterapia. Fiquei me questionando se não haveria alguma relação, também, entre essências e cores...rs Mera curiosidade intelectual.
Outro destaque que faço é para o fato de naquela época se guardava fortes esperanças de que a produção de uma literatura umbandista, que visasse explicar os rituais e seus princípios de forma própria (sem remeter ao espiritismo ou ao candomblé) viesse coibir abusos em nome da religião. Destaco:
Outro destaque que faço é para o fato de naquela época se guardava fortes esperanças de que a produção de uma literatura umbandista, que visasse explicar os rituais e seus princípios de forma própria (sem remeter ao espiritismo ou ao candomblé) viesse coibir abusos em nome da religião. Destaco:
Ante a grandiosidade e imponência da festa que se iniciava ali mesmo, naquele batelão, o Professor Moisés não se contém e chega-se a mim:
- Não concebo umbanda sem ritual! Sou francamente do som dos atabaques, do defumador e dos pontos cantados. Sei que existe um número apreciável de divergentes, mas Umbanda sem ritual deixa de ser Umbanda. O espiritismo codificado de Kardec não faz referência a essa religião africana que no fundo é cem por cento espiritismo. O que a faz divergir é apenas o ritual do qual sou apologista. Abolíndo-o é decretar a falência dessa grande seita. Todavia não endosso fanfarronices de imbecis que inventam cerimônias que não condizem com os seus atos liturgicos.
- Conhece o ritual da Umbanda? - perguntei.
-Empiricamente, porque não existe o livro que indique com precisão a forma pela qual se deva observar o cerimonial. É uma grande lacuna a falta de ritualistas na Umbanda. É preciso que apareça um escritor que tome a peito essa iniciativa.
- Com o tempo, Professor, talvez apareça...
- Talvez é sinônimo de nunca....
- Menos pessimismo, Professor! Com a criação da Federação de Umbanda, a cuja frente se encontram homens de talento, oradores notáveis, médicos, literatos de renome....
- Assim podemos prescindir do valioso concurso dos babalorixás dispersos que pululam pelas esquinas e enchem as mesas dos cafés. Ficaremos livres dessas literatrices prolixas e decepcionantes que se escondem em oratórias e formas vocabulares em evidente oscilação intelectiva. Em suma, acabar-se-ão os charlatães, porque ninguém se arvorará em chefe de terreiro sem estar devidamente munido de credenciais. Queira Deus que isso se torne em magnífica realidade.
Mal sabem eles que 60 anos depois as coisas não mudaram tanto assim...rs
Enfim, espero que com as citações mostradas, além da análise feita, eu consiga despertar alguma curiosidade a respeito do livro. Não sei quantas edições foram feitas desse livro. A que tenho em mãos é a oitava edição pela editora ECO (desconhecida para mim até então) feita ainda no Estado da Guanabara, para ter noção do quanto é "antiguinho" o livro. No mínimo, o que tenho em mãos saiu do prelo na década de 70. Meu marido deve tê-lo encontrado em algum sebo ou feira de livros usados. Por isso recomendo a procura dele, caso alguém se interesse, com livreiros online. O Estante Virtual é um bom site para isso!
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