2 de jan. de 2012

Reveillon X Umbanda

O artigo da Yvonne Maggie no dia 30/12/2011 para O GLOBO traz elementos interessantes. Mostra, por exemplo, como a tradição de usar o branco na noite de ano novo, tem sua origem na forma como os terreiros de umvbanda ocupavam as areias da praia no revellion nos anos 60-70.
Tem algumas análises bem clichês e datadas, claro, como aquelas que destacam a inversão social que ocorria na noite de revellion, onde os pobres se tornavam deuses e os ricos desciam de seus apartamentos para se ajoelhar e ser atendido pelos pretos-velhos e caboclos.
Mas ainda assim acho o artigo interessante:

A festa que foi de Iemanjá


Houve um tempo, lá pelos 1960 e 1970 e até meados dos 1980, em que no dia 31 de dezembro no Rio de Janeiro, dia de Iemanjá, pais e mães-de-santo com seus filhos saíam de suas casas nos subúrbios da cidade e se dirigiam às praias para fazer oferendas à rainha do mar. No final da tarde, estes grupos tomavam a orla da Zona Sul da cidade, Copacabana, Ipanema e Leblon, praias durante o ano frequentadas principalmente pela elite da cidade. Cada qual organizava ali seu espaço, construindo barreiras de areia em círculos, buscando enfeitar seu ‘terreiro’ da forma mais bonita, com velas e as flores preferidas de Janaína – palmas e rosas brancas. A noite caía, atabaques começavam a rufar, e médiuns que cantavam os “pontos”, ou cantigas dos “guias”, aos poucos entravam em transe. Baixavam então os pretos e pretas-velhas arqueados, falando enrolado como escravos velhos, e alguns caboclos viris e caboclas muito sensuais. Iemanjá também se apoderava de seu “cavalo” e rodopiava equilibrando uma taça com sua bebida preferida nas mãos.

Tinha então início o ritual que se estenderia pela noite. Médiuns com seus pretos e pretas-velhas, ou caboclos, davam “consulta” aos milhares de fiéis que procuravam os guias na esperança de receber uma benção e uma previsão otimista para seu ano novo. Entre os assistentes estavam também convivas das festas dos ricos e famosos que desciam dos edifícios luxuosos de Ipanema e Copacabana e iam até a praia, também vestidos de branco, aproximando-se dos pretos e pretas-velhas e caboclos para receber “passes” e fazer consultas. Muitas vezes um ou outro entrava em um inesperado transe para seu próprio espanto e de seus amigos.

Era um espetáculo impressionante ver a praia à noite, cheia de luzes vindas de buracos feitos na areia, iluminando rostos, braços e pernas, dando um ar misterioso ao cenário majestoso. Os tambores, em ritmo acelerado, e as cantigas dedicadas aos santos, especialmente à Iemanjá, ecoavam por todos os lados. À meia noite, os chefes dos terreiros começavam a lançar rojões e fogos de artifício. Um grupo de médiuns levava os barquinhos brancos e azuis, repletos de presentes para a vaidosa Janaína para bem depois da arrebentação, e um frenesi se espalhava entre eles, que ficavam bem perto da água esperando que os barquinhos desaparecessem. Se o barco voltasse era sinal de que Iemanjá não aceitara a oferenda.

Este espetáculo, que vi tantas vezes, era um ritual de inversão, como o antropólogo Victor Turner definiu magistralmente. Nessa noite de passagem do ano vivia-se, pelo ritual, a inversão da estrutura e da hierarquia vigente na nossa sociedade durante o ano: os ricos se postavam aos pés dos pobres, transformados em entidades poderosas, em busca de benção, proteção e bons presságios. O ritual, pela inversão, demarcava a divisão muito profunda entre as classes na vida cotidiana da cidade do Rio de Janeiro. A cada ano que passava mais gente acorria à Copacabana ou Ipanema para ver e se consultar com os guias naquela festa mágica.

Era um outro tempo e a nossa sociedade era bem diversa da que existe hoje. O Brasil mudou muito nestes últimos quarenta anos e a festa de Iemanjá atesta esta mudança. A transformação não foi repentina. Pelo final de 1980 os hotéis da orla começaram a abrilhantar a noite de 31 com fogos que desciam em cascata, ou eram colocados na própria areia competindo com os rojões e fogos dos terreiros. Pouco a pouco, a sereia do mar não brilhava mais naquelas águas repletas de barquinhos com seus presentes. Os efeitos pirotécnicos suplantaram a festa da santa, espantando pais e mães-de-santos e seus acólitos para outras plagas. Até que em 1992, o prefeito da cidade decidiu financiar os fogos que partem de imensas balsas ancoradas no mar. A queima oficial encantou tanto que, considerada uma das mais bonitas do mundo, compete com Nova Iorque, Sidney e outras capitais mundiais.

Hoje mais de dois milhões de pessoas afluem à Copacabana para ver os fogos e assistir aos inúmeros shows gratuitos em palcos montados nas areias da praia. São pessoas de todas as classes que se acotovelam e se abraçam à meia noite e não há mais a inversão ritual de outrora. Assiste-se a um espetáculo democrático, regido pelo Estado e sem a fé de antigamente, embora ainda haja a lembrança de Iemanjá em um ou outro terreiro que insiste em se instalar no espaço tomado pela população, e nos trajes brancos das pessoas, algumas das quais levam palmas e rosas em oferenda.

O Ano Novo não nasce mais sob as bênçãos da mãe de todos os orixás e os ricos não se postam mais aos pés dos pobres. O Ano Novo na praia de Copacabana talvez seja um sinal de que o povo brasileiro anseia por uma sociedade menos desigual e mais democrática. Feliz Ano Novo!